Título do trabalho: A ordem cerebral e as ‘desordens’ do cérebro: uma etnografia da divulgação neurocientífica e da psiquiatria biológica1 Autor: Rogerio Lopes Azize e-mail: [email protected] Filiação institucional: Doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ GT 19: Natureza, corpo e sentidos Coordenadores: Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP), Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ) Resumo: O cérebro, as neurociências e as doenças hoje relacionadas aos neurotransmissores, como as variantes da ‘depressão’ e da ‘ansiedade’, são presença marcante na cultura ocidental contemporânea. Um ‘cerebralismo’ apresenta-se como uma face específica do crescente fisicalismo que informa nossa visão de mundo; nesta versão, o cérebro ganha uma peculiar autonomia em relação ao corpo, dando origem a uma hierarquia entre estes dois elementos - o primeiro gera conseqüências no segundo. A noção de mente, por sua vez, não é abandonada pelo discurso neurocientífico, mas é apropriada como um subproduto do cérebro. As novas tecnologias de visualização e medicamentalização do cérebro são, por um lado, recebidas como novas terapias das quais muitos podem se beneficiar; por outro, desconfia-se das possíveis conseqüências de uma ‘identidade cerebral’, com acusações de ‘reducionismo’. Exploro nesta comunicação dados de uma etnografia que envolve publicações de neurocientistas em um esforço de “divulgação científica”, publicidade de laboratórios farmacêuticos, cursos e congressos cuja temática resumo aqui pelo termo ‘neuro-psiquiatria-biológica’. Palavras-chave: cérebro; neurociências; psiquiatria biológica; divulgação científica
1 Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, em Porto Seguro, Bahia, Brasil.
Ao longo destes capítulos, o leitor ter-se-á rendido à evidência de que o cérebro do homem é constituído por milhares de milhões de neurônios ligados entre si por uma imensa rede de cabos e conexões, de que nos seus “filamentos” circulam impulsos elétricos ou químicos inteiramente explicáveis em termos moleculares ou físico-químicos e de que qualquer comportamento se explica pela mobilização interna de um conjunto topologicamente The explanation given to any relation can survive and develop within a given society only if this explanation is stylized in conformity with the prevailing thought style.
O cérebro nunca foi tão visível. Do ponto de vista das “ciências do cérebro” ou
“neurociências”, o sentido desta frase se justificaria fazendo alusão às tecnologias de
neuroimagem funcional, que permitem ver e estudar o cérebro vivo, ‘in motion’. Do
ponto de vista do qual me coloco, o das ciências humanas, da antropologia em particular,
não é menor a sua visibilidade, mas por outras razões: o cérebro tem sido personagem
freqüente em reportagens nas maiores revistas do Brasil, tem publicações exclusivamente
dedicadas a ele, e espaço em horário nobre na TV. O cérebro é hoje um órgão midiático,
com presença marcante em um universo muito além das publicações especializadas em
neurociências. Quem ainda não viu, ao folhear uma revista ou ligar a TV, uma rede de
neurônios interligados, ruídos de impulsos elétricos ou explicações sobre reações
químicas? Ou ainda a imagem de ‘cérebros coloridos’ pelos exames de ressonância
magnética funcional, na tentativa de estabelecer correlatos neurais para doenças,
sensações e sentimentos? Ou uma animação que mostra como operam os
neurotransmissores, como neurônios se comunicam entre si, e como certas drogas podem
modificar a concentração de serotonina ou noradrenalina envolvidos neste processo? Se o
cérebro mostra-se aos olhos dos especialistas através de exames funcionais que
permitiriam construir correlatos neurais de N tipos, mostra-se também ao público leigo
através da grande mídia, de obras de divulgação científica para adultos e crianças e do
esforço publicitário de laboratórios farmacêuticos com produtos que atuam no sistema
O cérebro tem um lugar peculiar nos discursos contemporâneos sobre o corpo
humano. Ele pode sentir, apaixonar-se, ouvir, ver, adoecer, ser treinado e aprimorado.
Para Emily Martin, uma das vozes críticas ao que ela chama de “neuroreducionismo”, o
determinismo neurológico seria o “novo disfarce da natureza” (2000:585). Com status de
sujeito, o cérebro tornou-se um órgão inevitável, incontornável, tema de debates que
podemos chamar de científico-morais2, visto envolverem questões como identidade
pessoal, livre-arbítrio, liberdade e autonomia.
O cérebro tornou-se um personagem central para a nossa definição de identidade
pessoal, de sujeito. Das neurociências à filosofia, da medicina à antropologia,
especialistas têm se esmerado em comentar o lugar do cérebro hoje em relação ao nosso
corpo e nossa cultura, em discussões – diretas ou indiretas, já que nem sempre se trata de
interlocutores – nas quais tensões são mais comuns do que concordâncias. Os debates
apaixonados que se multiplicam sobre o seu funcionamento, funções e doenças são sinal
deste lugar especial do cérebro. O adjetivo apaixonados já avança aqui a idéia de que os
discursos sobre o cérebro não são ideologicamente neutros – e isso inclui, é claro, o meu
próprio. Nestes debates estão em jogo alguns dos valores centrais à cosmologia que
atravessa a cultura ocidental moderna: autonomia, liberdade, razão, autenticidade. Em
outras palavras, ao analisar discursos da ciência sobre o cérebro, temos um atalho
particularmente rico para aceder à noção de Pessoa que faz parte de uma determinada
visão de mundo.3 Um neurocientista modificaria a frase acima, concordando com o lugar
particular do cérebro, mas afirmando que a nossa noção de Pessoa é sustentada por ele:
2 Estou fazendo um paralelo com a categoria ‘físico-moral’, como usado em Duarte (1986) para designar perturbações relacionadas a uma totalidade da pessoa, que tem conseqüências para além da sua manifestação no corpo. Alguém poderia dizer já agora que toda doença é físico-moral, assim como todo debate e fazer científicos seriam também “guerra e discurso”. Mas digamos que algumas querelas científicas em torno do corpo humano são mais morais do que outras, expondo essa tensão de forma mais clara. Vide não apenas aquelas que dizem respeito ao cérebro, mas também as discussões sobre células-tronco, aborto e manipulação genética.
3 Russo e Ponciano (2002:349) já haviam formulado está idéia em um texto sobre o “sujeito da neurociência”: “acreditamos que examinar as novas teorias sobre a pessoa produzidas no âmbito da neurociência significa examinar uma nova forma de compreender/interpretar a pessoa que, ao mesmo tempo, indica novos modos de construção de si”.
In our era, we know that it is our brain that sustains, manages and generates our sense of self, of personhood, our sense of others and our humanness. The brain is a complex organ, like the heart, kidneys, and liver. But when we think of those organs, we don’t get romantic or concerned about them as entities unto themselves. (Gazzaniga, 2005, 31)
Não se trata de novidade a atribuição de uma importância central, de emoções ou de
características morais a este ou aquele órgão do corpo humano. O coração ainda hoje tem
um lugar de destaque no imaginário ocidental, os pulmões já tiveram lugar importante em
outros sistemas médicos que não o modelo biomédico atual. Mesmo um ‘ufanismo
cerebral’ não é exatamente uma invenção do final do século XX, remetendo, em uma
primeira parada, à primeira metade do século XIX, quando se estabelecem as bases da
neurociência; e, numa segunda parada, à agenda materialista do século XVIII.4 Mas,
longe de se afirmar com isso que não há nada de novo no assunto, pelo contrário, afirmo
a pertinência da discussão. Explicar porque hoje, como disse Gazzaniga, um destacado
neurocientista, acabamos por “get romantic” quando falamos do cérebro é um desafio
instigante e complexo. Uma de minhas hipóteses aqui vai no sentido de uma
autonomização desse órgão, seja no discurso erudito, seja no discurso leigo. O cérebro,
por assim dizer, ganhou vida própria, um órgão ao qual se faz referência na terceira
pessoa. Ora, alguém poderia argumentar que é assim também que nos referimos aos
nossos rins. Mas não atribuímos aos rins o controle da nossa racionalidade e das nossas
emoções, de nossos reflexos e crenças, da criatividade e da memória.5 Definitivamente,
nós não somos os nossos rins. Tampouco se encontra alguma representação que relacione
um fígado a cada indivíduo, ainda que isso seja um fato empírico. Mas um neurocientista
convidado a participar de um debate sobre o individualismo pode justificar a sua presença
enunciando a idéia de que “a cada cérebro, corresponde um e um único indivíduo”
(Percheron, 1987:95). Não se trata de nenhuma interpretação forçada, mas de uma idéia
explícita; para a neurocientista e psiquiatra Nancy Andreasen, “o cérebro é a essência
4 Será necessário uma discussão mais aprofundada desses períodos, uma chave histórica para a compreensão do quadro atual no debate sobre neurociências e a problemática mente/corpo. Por enquanto, limito-me a dizer que tanto princípios vitalistas relacionados a Naturphilosophie do início do século XIX, quanto os princípios materialistas relacionados ao Iluminismo serão úteis para a discussão.
5 Ao menos não dentro do escopo da lógica biomédica, hegemônica dentro do escopo da cultura ocidental moderna ao qual me limito.
daquilo que nos define como seres humanos. Compreender a sua estrutura e o seu
funcionamento é compreender a nós mesmos.” (Andreasen, 2005: 43)
Uma batalha intelectual vem sendo travada neste campo de debate. O que está em
jogo aqui é o estatuto da relação entre mente e cérebro, e se os discursos sobre essas duas
entidades podem ser de alguma forma relacionados. Para um neurocientista como Jean
Pierre Changeux, a resposta é sim: para ele, recentes avanços na neurociência abrem uma
janela para que se fale em uma “física da alma” (2000:52) ou em uma “moderna biologia
do espírito” (1985:9). Para um filósofo como Paul Ricoeur (2000), são discursos
irredutíveis um ao outro: ou falamos de neurônios, ou de pensamentos, ações e
As “ciências do cérebro” passam hoje por um momento peculiar, de celebração do
que já se teria atingido, de otimismo quanto às possibilidades futuras e de grande
exposição pública. Neurocientistas e psiquiatras de uma linha biológica aparecem em
espaços de referência na grande mídia, como as páginas amarelas da revista Veja ou o
programa Fantástico, na Rede Globo. Um ‘ufanismo neurocientífico’ justifica-se com
base em descobertas recentes, mas também baseado em expectativas para o futuro, que
trabalham com a noção de que a ciência avança de forma incomensurável. Estaríamos na
“era de ouro da neurociência”, e o projeto para o século XXI seria encontrar uma
“penicilina para a doença mental” (Andreasen, 2005); estaríamos recém-saídos do que o
congresso americano designou a “década do cérebro” (os anos 90), mas somente recém-
entrando no que alguns chamam o “século do cérebro”. Todos estes períodos “do
cérebro” e “da neurociência” parecem apontar para um novo capítulo do já tão debatido
fisicalismo que constitui um dos traços marcantes da cultura ocidental, traço que foi
exacerbado durante o século XX. Uma certa noção de ‘pessoa’ está informada hoje por
um cerebralismo, uma visão de mundo que liga um indivíduo ao seu cérebro e situa neste
órgão o locus de nossa identidade pessoal.6 É sobre esta noção de ‘pessoa’ e sobre
algumas de suas manifestações contemporâneas que me debruço aqui.
6 Sobre este tema, seria necessário em um espaço mais amplo apresentar uma revisão bibliográfica de autores que caminham em direção semelhante. Ehrenberg (2004) fala em um “sujeito cerebral” e na emergência de uma “neurobiologia da personalidade”. Para ele, no quadro do sucesso atual das neurociências, o cérebro “não pode ser mais considerado hoje somente como um objeto científico e médico, ele foi promovido também a ator social”, podendo tornar-se um “objeto de identificação, um meio de se reconhecer como agente social” (p.133). Nikolas Rose (2003, 2007) vem denunciando o que ele chama um
etnografia de discursos sobre um órgão e seus transtornos
Este artigo é parte de um esforço de pesquisa que poderia ser chamado multi-sited.
Fui levado a este formato pelo ‘campo’ que se desdobrava à minha frente, e apontava em
mais de uma direção. Para utilizar uma imagem ‘cerebral’, eu me senti – e me sinto
ainda, já que se trata de um work-in-progress, etnografia para uma tese ainda em
confecção – como em circunvoluções. O cérebro, na verdade, não foi meu ponto de
partida, e sim um tema inevitável que se impôs a partir de um interesse primeiro em
discursos sobre a ‘depressão’ e a ‘ansiedade’, a publicidade de laboratórios farmacêuticos
e a medicamentalização do cotidiano. Assim, interessado na dinâmica publicitária da
indústria farmacêutica, participei do XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em 2007,
informado que os laboratórios têm uma grande área reservada para a divulgação de seus
produtos. Em uma manhã de congresso, reuni mais material publicitário de laboratórios
sobre doenças ligadas ao sistema nervoso central (segundo o paradigma neuro-
psiquiátrico atual) do que em todos os meus esforços anteriores, incluindo minha
pesquisa para o mestrado. Mais do que o acesso a material publicitário, o congresso
acabou sendo uma oportunidade para acompanhar ‘ao vivo’ a relação dos laboratórios
com os médicos e as mecânicas de divulgação de produtos farmacêuticos.
Em outro registro dessa etnografia, alguns meses antes um amigo me entregou um
folder que anunciava um curso cujo tema era “neurociência do cotidiano”. Tratava-se de
um curso de curta duração, com 4 aulas, que se propunha a ser uma espécie de breve
introdução às neurociências para leigos; o curso era oferecido em uma escola na zona sul
do Rio de Janeiro, na qual se ministram outros cursos com temas tão variados quanto
cinema, filosofia, psicanálise e música. Matriculei-me no curso, interessado no conteúdo,
mas também na situação em si: como se traduz ao público leigo o saber de uma área do
“self neuroquímico” e uma “individualidade somática”, termos que falam de uma mutação mais ampla “na qual nós, no Ocidente, mais especialmente nos EUA, passamos a entender nossas mentes e selves em termos de nossos cérebros e corpos” (Rose, 2003:46). Vidal (2005) sugere o uso da expressão “brainhood” para designar o que seria “a qualidade ou condição de ser um cérebro”; a idéia é interessante, desde que a expressão não substitua, como parece ser o caso no artigo em questão, o conceito de “personhood”, que vem a ser uma categoria de análise mais ampla, ao menos do ponto de vista da antropologia. Assim sendo, “brainhood” poderia ser sim um dos traços fortes de uma noção de ‘pessoa’ em nosso tempo.
conhecimento tida como super-especializada e complexa?; qual seria o público
interessado em uma introdução às neurociências? A experiência acabou me despertando
para um outro fenômeno interessante: a popularização das neurociências e a publicação
de livros de divulgação científica nessa área. Minha intenção é analisar justamente este
subproduto deste momento nas neurociências: não aquilo que poderíamos chamar de
hard-science, artigos em revistas científicas de prestígio, mas sim os trabalhos de
‘popularização neurocientífica’, aqueles nos quais os profissionais da área ou jornalistas
de ciência se propõem a explicar o funcionamento do cérebro para um público leigo.
Trata-se de um fenômeno, ao que parece, recente. Façamos uma pequena ‘antropologia’
das minhas próprias referências bibliográficas: entre elas, pouca coisa se encontra que
tenha sido publicada antes do ano 2000; e isso não porque eu tenha optado por, entre
outras possibilidades, trabalhar com o material mais atual possível ou porque tenha feito
uma revisão bibliográfica exaustiva. Ainda que tenha sido exaustiva para mim, o material
aqui citado é apenas uma amostra, ainda que significativa, do que vem sendo publicado
em termos de popularização neurocientífica e reportagens sobre diversos aspectos do
cérebro. Na verdade, também é recente a bibliografia que problematiza o lugar do cérebro
na cultura contemporânea, a ampliação do uso de psicofarmacêuticos, a explosão de
diagnósticos de doenças cuja etiologia estaria ligada a um mau funcionamento dos
neurotransmissores. Sobre este assunto, boa parte do debate disponível é realmente
Além de multi-situado, os dados de campo que reuni são fragmentados. Com o passar
do tempo, vi uma pilha heterogênea crescer em minha mesa de trabalho, ao lado do
computador. Fazem parte desta pilha textos de ciências humanas sobre o meu tema de
pesquisa, peças publicitárias de laboratórios farmacêuticos, livros de popularização
científica sobre neurociência, uma coleção de livros infantis tendo neurônios como
personagens, reportagens de variadas revistas cujo tema passa pelo cérebro ou pela
depressão, meu diário de campo, e a lista poderia continuar. Juntarei a heterogêneo e
fragmentado o adjetivo angustiante; perdi muito tempo me perguntando por onde
começar, o que cortar, e se eu não teria perdido o foco inicial (de fato perdi, mas até aqui
considero que isso seja positivo.). Com o passar do tempo, os meus sistemas de
classificação deste material – jornalismo aqui, publicidade ali, teoria de tal tipo lá –
falhavam, e lá estava a ‘pilha’ mais uma vez, desarrumada, inclassificável; para “piorar”
a situação, essa pilha era curiosamente alimentada por amigos, familiares e conhecidos
que me chegavam com material, sempre pertinente, sobre o tema. Não é a generosidade
de pessoas que me cercam que quero comentar aqui, mas sim o fato de tantos dados de
campo terem caído no meu colo. Durante algum tempo, este fato foi taken for granted;
depois percebi que isso falava alguma coisa sobre a ‘natureza’ do meu tema. Dificilmente
o mesmo aconteceria se eu estivesse trabalhando sobre alguma região ou assunto mais
estrangeiro ou esotérico para a maioria das pessoas. Mas, ao que parece, o cérebro e
doenças a ele relacionadas são um tema, ainda que não obsessivo, interessante para o
público em geral, fazendo parte hoje de uma cultura leiga. Em outras palavras, além do
material que me era entregue de presente em si, o fato de muito material me ser entregue,
por si só, mereceria alguma reflexão. Isso fala de uma circulação de idéias e valores entre
um público mais amplo e do interesse que representações sobre o cérebro despertam. O
conjunto de esforços etnográficos acaba soando como uma experiência que inclui
movimentos mais e menos sistemáticos, o que de fato vem ocorrendo.7 Mais do que uma
escolha, trata-se de uma forma de funcionamento que o formato do campo impôs.
Em um trabalho no qual discutem as origens dos conceitos neurocientíficos no século
XIX, Clarke e Jacyna (1992) afirmam que o tema não pode ser compreendido se
divorciado da cultura mais ampla, não-científica, da filosofia e da visão de mundo de uma
época. É neste sentido também que, para Percheron (1987), os discursos sobre o cérebro
não são ideologicamente neutros – uma observação particularmente interessante visto
tratar-se ele mesmo de um neurocientista. Ao revisar a bibliografia sobre a história dos
conhecimentos sobre o cérebro, o autor retoma as controvérsias entre localizacionistas e
7 Para uma experiência de pesquisa semelhante, e com um tema aproximado, ver o trabalho de Nelkin e Lendee (1995) sobre a “mística do DNA” na cultura norte-americana. Para elas, “popular culture matters”, assim como o discurso científico. Concordo com elas em sua proposta de análise que leva em conta de forma equivalente a divulgação científica e tiras de quadrinho que tenham o DNA como tema. “The point of our analisys, dizem elas, is not to identify popular distortions of science or to debunk scientific myths. The interesting question is not the contrast between scientific and popular culture; it is how they intersect to shape the cultural meaning of the gene” (p.4). Não seria absurdo falar do sucesso atual das neurociências como uma ‘mística do cérebro’, parafraseando as autoras.
anti-localizacionistas, para demonstrar que um debate “pretensamente científico era de
fato político” e nuançado: enquanto de forma geral os localizacionistas eram tidos como
hostis à ordem, adversários da pena de morte, anticlericais, ateus e republicanos, na
Alemanha, às voltas com seu processo de unificação, são os anti-localizacionistas que
É claro que construir esse tipo de relação fica mais fácil quando se trabalha com o
passado. Mas uma análise, ainda que superficial, de uma determinada posição dentro da
filosofia contemporânea, pode nos dar algumas pistas de relações possíveis com o atual
sucesso das neurociências. No que me parece ser uma boa introdução aos tópicos
filosóficos principais relacionados ao debate cérebro/mente, Matthews (2007) analisa um
artigo particularmente significativo de Paul Churchland, filósofo ligado a uma visão
chamada “materialismo eliminativista”:
O materialismo eliminativista é a tese de que nossas concepções de senso comum sobre os fenômenos psicológicos constituem uma teoria radicalmente falsa, uma teoria tão fundamentalmente defeituosa que ambos os princípios e a ontologia desta teoria eventualmente se deslocarão, ao invés de serem reduzidos suavemente, pela neurociência consumada (Churchland, 2004:382, citado em Matthews, 2007:48)
Uma “neurociência consumada” apresentaria um substituto mais adequado para o que
Paul Churchland chama “folk psychology” ou psicologia do senso comum, porque
enquanto a segunda trabalha com conceitos que fazem uso da idéia de intencionalidade,
incomensuráveis com as categorias da ciência física, “a neurociência utiliza os mesmos
tipos de conceitos das outras ciências físicas e, portanto, é coerente com elas como parte
de uma explicação científica unificada sobre o mundo, incluindo a nós próprios”.
(Matthews, 2007:51) Vale dizer que esse posicionamento defendido por Paul Churchland
e outros autores filiados a esta corrente gera uma resposta por parte de autores filiados às
ciências humanas, que advogam, a partir de diferentes enfoques, contra teses
neuroreducionistas. É o caso do filósofo Paul Ricoeur, em um livro cujo formato é raro:
trata-se de um diálogo entre ele e o neurocientista Jean-Pierre Changeux, que ganhou
notoriedade com a obra “O Homem Neuronal”, de 1983. Um dos argumentos centrais de
Ricoeur é o combate ao que ele considera ser um amálgama semântico que reuniria dois
discursos, um que diz respeito ao corpo e ao cérebro, e um outro que diz respeito à mente.
Para Ricoeur, estas seriam perspectivas heterogêneas, que não podem ser reduzidas uma a
In the one case it is a question of neurons and their connection in a system; in the other one speaks of knowledge, action, feeling – acts or states characterized by intentions, motivations or values. [.] .I do not see a way of passing from one order of discourse to the other: either I speak of neurons and so forth, in which case I find my self in a certain language, or I speak of thoughts, actions and feelings that I connect with my body, to which I stand in a relation of possession, of belonging (Ricoeur, 2000:14-5)
A relação que o sujeito entretém com o seu cérebro, argumenta Ricoeur, é de um tipo
específico, que não pode ser comparado com a relação que se tem com, por exemplo, a
própria mão ou com os olhos. O cérebro, em sua opinião, não faz parte da nossa
experiência corporal (bodily experience); ele seria um objeto da ciência e não da nossa
experiência cotidiana (p.49). Apesar de concordar a princípio com Ricoeur, a análise que
apresento do material de divulgação neurocientífica para o público leigo aponta
justamente para essa possibilidade, a de que o cérebro venha a ser experimentado pelas
pessoas, em sua vida cotidiana, como uma experiência corporal.
Mas antes dessa discussão, vejamos uma resposta dada pela antropóloga Emily Martin -
que vem refletindo em últimos trabalhos (2000, 2007) sobre o lugar do transtorno bipolar
na cultura norte-americana - àqueles que postulam um monismo ou materialismo
eliminativista. Para ela, os pressupostos dessa posição consistem em um erro categorial:
U.S. folk psychology will not necessarily be replaced by the view that inner states are neural structures, any more than a habitual gambler’s view that a score of 21 wins a hand of blackjack would be replaced by the view that habitual gambling is caused by possessing a particular set of genes. If a more reductionistic and brain-based picture of human action displaced our current everyday mental concepts, it would not be because (or solely because) the neural net theory had won in the court of scientific opinion. It would be
because the environment we live in (and that scientific theories are produced in) had shifted so that a brain-centered view of a person began to make cultural sense. (Martin, 2000:575)
Acredito que o ambiente no qual estamos vivendo já tenha incorporado essa visão
cerebralista de pessoa, ainda que convivendo com uma miríade de outras representações.
Para mim, o fato de intelectuais ligados às ciências humanas começarem a ocupar este
debate de forma mais intensa é um sintoma disso. Ainda que seja ingênuo atribuir esse
espírito cerebralista de nosso tempo somente ao sucesso público das neurociências hoje,
estou convencido do rendimento de uma análise que se dedique ao conteúdo da
divulgação neurocientífica; especialmente porque este material parece construir
exatamente aquilo que Ricoeur diz não existir: uma bodily experience do cérebro, que
começaria a fazer sentido em nossa cultura.
Sem dúvida, existem muitas formas de se debruçar sobre a produção de fatos
científicos a partir de interesses antropológicos; uma delas é entrando no espaço do
laboratório, esforço que tem referência importante no trabalho pioneiro de Latour e
Woolgar (1997). Mas, se levarmos a sério o desafio que eles se colocam - efetuar uma
união entre o contexto científico e o contexto social - as entradas etnográficas se
multiplicam. Eu não diria que o meu trabalho se encaixa no rótulo “antropologia da
ciência”, mas quero flertar com a linguagem desta sub-área. Estou em busca de espaços
nos quais discurso científico e discurso leigo se tocam, se interpenetram, se misturam, se
Quando comecei a me deparar com a palavra ‘mente’ nas peças de divulgação
neurocientífica, confesso que a princípio me surpreendi. Por desinformação, achei que o
vocabulário neurocientífico não incorporava conceitos dessa ordem, simplesmente
substituindo-os por neurônios, sinapses, neurotransmissores, impulsos elétricos e reações
químicas; mas a ‘mente’, assim como o ‘corpo’, estavam lá, ao lado deste arsenal de
conceitos que explicam o funcionamento do cérebro. Entre os meus ‘nativos’, o cérebro
tem autonomia em relação ao corpo. Melhor dizendo, há uma hierarquia entre estes dois
elementos, cérebro e corpo, no qual o primeiro gera conseqüências no segundo. O mesmo
vale para a relação entre cérebro e mente: a forma como a idéia de mente aparece
representada em materiais de divulgação neurocientífica tende a reduzi-la a um fenômeno
segundo. Por exemplo, ao comentar a influência de fatores ‘genéticos’ e ‘não-genéticos’
para explicar as causas da depressão/ansiedade de um paciente, Nancy Andreasen oferece
Seja qual for a combinação de fatores, sejam eles “genéticos” ou “não-genéticos”, interagiram entre si. Alguns eram “físicos”, como a gripe, e alguns “mentais”, como as experiências de sua vida. Eles afetaram o seu cérebro e a atividade e funções do cérebro, conhecidas como mente. (Andreasen, 2005: 39) Para entender como as perturbações no cérebro levam a perturbações na mente, precisamos de um entendimento rudimentar de como o cérebro é organizado e como ele funciona para produzir os pensamentos, as emoções e a identidade pessoal. (Andreasen, 2005: 39)
Antes que qualquer coisa aconteça em um nível ‘mental’, algo se passou no cérebro.
A mente é uma espécie de epifenômeno do cérebro, submetida a este, posicionada em um
outro nível hierárquico. No curso de “neurociência do cotidiano” que frequentei,
inúmeras vezes esta hierarquia ficou explícita, como quando se discutiu a questão do
sono. A professora falava sobre o cortisol, “o mais importante hormônio para a regulação
do estresse”, com a função de ajustar “o funcionamento do corpo conforme as
necessidades do cérebro”. Ainda sobre o estresse, ela comenta que se trata de uma força
que atua sobre o cérebro e “exige uma resposta, uma atitude do cérebro e do corpo”. Este
tipo de ajustamento “conforme as necessidades do cérebro” me fez lembrar uma análise
de Emily Martin em “The woman in the body” acerca do discurso científico da
reprodução feminina; as metáforas da relação entre cérebro, hormônio e ovário remetem
a relações de hierarquia e não – ela insinua que isso poderia ser uma possibilidade – “um
conselho que chega às suas decisões considerando influências mútuas”. (2006:86) A
menopausa, então, é representada como uma falha no sistema de autoridade. Respeitadas
as diferenças, o que Martin demonstra é que as metáforas científicas são construídas a
partir de uma escolha entre outras possíveis.
Uma hierarquia entre cérebro e mente também aparece no livro infantil “o neurônio
apaixonado”. Trata-se do primeiro volume de uma coleção de livros infantis com 5
volumes chamada “Aventuras de um neurônio lembrador”, de autoria do neurocientista
Roberto Lent.8 Em cada volume, enquanto um garoto chamado Ptix se apaixona ou
aprende a andar de bicicleta – em termos gerais, enquanto ele faz uso dos seus sentidos -,
vemos paralelamente o que está acontecendo em seu cérebro. O cérebro ganha uma
representação lúdica, na qual neurônios com funções diversas (o neurônio da emoção, o
neurônio da visão e outros) ganham vida e agência, viram personagens que interagem
entre si, com conseqüências nos sentimentos e sentidos do Ptix. Neurônios viram
personagens de uma história em quadrinhos e são as aventuras deles que explicam as
reações do garoto ao mundo que o cerca. Por enquanto, quero chamar atenção para a
última página dos livros da coleção, que traz um texto com “dicas para os adultos” e
apresenta os objetivos educacionais do livro:
Neste livro, pelo menos dois conceitos importantes são veiculados às crianças: o primeiro, de que até as operações mais complexas da mente, como é o caso das emoções, são controladas por neurônios. O segundo é que as emoções têm um componente psicológico, subjetivo, mas também um vasto repertório de fenômenos corporais que o acompanham, variáveis para cada emoção, mas raramente ausentes. Ambos componentes são controlados pelos neurônios das emoções e seus circuitos. (Lent, 2004: 31)
Além de mostrar um exemplo de como a idéia de ‘mente’ é utilizada em um material
com objetivo de educação neurocientífica, esta coleção de livros infantis nos mostra
situações em que o cérebro de fato poderia ser vivenciado como uma ‘experiência
corporal’ - para voltar ao tema levantado por Paul Ricoeur - e até como uma experiência
afetiva. No primeiro volume, o garoto Pedro Tiago (Ptix é o apelido), apaixona-se pela
8 No final de agosto de 2006, estava em cartaz no Rio de Janeiro uma peça de teatro baseada na coleção, divulgada no Jornal JB de 25 de agosto de 2006. Em setembro de 2006, uma entrevista com o autor da coleção foi publicada pela Revista Veja (data de capa 27/09/2006), na qual ele reflete sobre os dilemas éticos em torno das neurociências.
sua nova vizinha. Mas, durante a história, vamos perceber que dizer “Ptix apaixonou-se”
é apenas parte da explicação. As reações físicas da paixão do garoto são recebidas com
estranhamento pelo personagem Zé Neurim, personagem central da trama no nível
neurológico, “um neurônio lembrador, quer dizer, um neurônio que ajuda a memória do
Ptix a funcionar”. Zé Neurim empreende uma pesquisa com os outros neurônios para
saber o que teria gerado a estranha reação, que incluía o coração disparado, gotas de suor
na testa e respiração acelerada. A trama envolve um novo encontro entre Ptix e a sua
vizinha, um plano arquitetado pelos próprios neurônios. Zé Neurim vai descobrir que a
causa estava no “setor de paixões e felicidades”, onde trabalha um outro personagem
chamado Acumbente dos Prazeres9: “Apaixonado, o Acumbente deixou o Ptix também
apaixonado! Zé Neurim pensou: - Onde já se viu neurônio apaixonado?” (p.27). O
Acumbente estava “totalmente fora de si, dando ordens para o coração do Ptix bater mais
rápido, a respiração acelerar, o suor suar, e assim por diante”.
Atribuir esse nível de agência ao cérebro - esta é a hipótese que quero defender aqui –
abre caminho para que se possa pensar em uma terceira linguagem, retomando o debate
entre Ricoeur e Changeux (op. cit.), que inclua o vocabulário neurocientífico e a idéias
ligadas ao campo da mente e da intencionalidade. Na coleção “Aventuras de um neurônio
lembrador”, os neurônios têm intenções e sentimentos. Na grande mídia, também
podemos encontrar esse tipo de representação que, de certa forma, ‘humaniza’ o cérebro,
atribuindo-lhe determinadas características. Vamos tomar como exemplo uma
reportagem publicada na revista Época10 sobre softwares e jogos para o que se chama
“treinamento cerebral”. O princípio é o de que “seu cérebro funciona como um músculo.
Quanto mais usá-lo, mais forte ele ficará”, e a prática de esportes é utilizada mais de uma
vez como um exemplo de referência; especialistas na área são citados para sustentar a
idéia de que “Qualquer forma de atividade de aprendizado é boa, pois ela desafia o
cérebro, e o cérebro gosta de ser desafiado”; um neurocientista afirma que “Quase tudo
9 Nas “dicas para os adultos”, vamos aprender que o núcleo acumbente é a área do cérebro envolvida no controle das emoções. “Os neurônios acumbentes fazem parte de um circuito que emprega a substância chamada dopamina como mensageiro sináptico. Esse circuito é muito importante para as emoções que provocam prazer, e esta envolvido nos mecanismos neurais da dependência química”. (p.31)
10 Data de capa 10 de março de 2008. Na capa, o cérebro é representado como um quebra-cabeças; uma última peça está sendo encaixada pela mão de uma pessoa. Na chamada, lê-se “Você pode virar um gênio? O que há de verdade nos novos jogos que prometem melhorar o desempenho do seu cérebro – e são cada vez mais vendidos”.
pode ser melhorado. O cérebro é maciçamente moldável – se for trabalhado da maneira
correta”; um jogo tem o objetivo de treinar os usuários para “extrair o máximo de seu
córtex pré-frontal”, região do cérebro, afirma a revista, “considerada como sede da
É claro que não se trata de características quaisquer, mas de um conjunto de atributos
que fazem ressonância entre si. Uma das hipóteses que pretendo testar é se há um
paralelo entre certas características que hoje são atribuídas ao cérebro e valores que
fazem parte, por assim dizer, da ‘bula’ de valores para o indivíduo contemporâneo. O
órgão passa a ter determinadas características positivadas em nosso tempo: o cérebro
‘gosta de desafios’, é ‘plástico’, ‘gosta de novidades’, pode e deve ser exercitado para
otimizar as suas possibilidades. Sem dúvida, trata-se de um conjunto de valores que
recebe um sinal positivo, por exemplo, no mercado de trabalho. 11
Fica claro que uma visão cerebralista faz parte do arsenal de valores que compõe
nossa visão de ‘pessoa’ hoje, ao menos no que diz respeito às classes médias e altas no
contexto que podemos chamar ‘cultura ocidental moderna’. Mas não se trata de um
conjunto de idéias ou de um campo semântico que se afirma sem tensões com outros. Em
duas situações de campo, pude presenciar essas tensões em movimento, primeiro entre a
neurociência e a psicanálise, depois entre a neuro-psico-farmacologia e a psicanálise.
Descrevo essas duas cenas a seguir, com fragmentos do meu diário de campo.
Em 2007, freqüentei um mini-curso intitulado “neurociência do cotidiano”,
oferecido pela professora Suzana-Herculano, neurocientista da UFRJ que vem
trabalhando com ‘divulgação científica’, em uma escola chamada POP (Pólo
de pensamento contemporâneo), um espaço que lembra a mais antiga ‘Casa do
Saber’, no Rio de Janeiro. A primeira aula tinha como tema ‘a organização do
comportamento’. Tivemos ali, em uma turma com cerca de 25 pessoas, uma
introdução ao modus operandi do cérebro. Um dos temas era “a forma como o
11 Em um trabalho recente, Emily Martin (2007) desenvolve a hipótese de que haveria uma afinidade entre um certo comportamento cultivado e cultuado dentro na cultura corporativa norte-americana, e os sintomas relacionados ao pólo maníaco da bipolaridade. Neste sentido, inovação, intensa energia, adaptabilidade e mobilidade seriam características comuns entre um diagnóstico e um tipo de comportamento incentivado e premiado em certos contextos.
cérebro aprende”. A professora fez conosco testes de memorização, que
deveriam mostrar os limites de nossa memória; frente a uma lista de 10
palavras, ditas por elas em voz alta, os de melhor performance citavam entre 5
e 7 palavras, cores ou conceitos. Após estes testes, um homem presente,
contando por volta dos 50 anos, perguntou à professora sobre Freud e a
‘atenção flutuante’ do analista. Ela respondeu com uma negativa simpática,
simplesmente dizendo que esta idéia não fazia sentido para a neurociência,
para quem atenção estaria ligada a ‘foco’. Um pouco mais tarde, este mesmo
homem questionou a respeito de certas sensações (um dos temas da aula era
‘percepção’) e sentimentos que, segundo ele “emburrecem a gente, como o
medo e a neurose”. Mais uma vez ela disse que não, que na verdade se tratam
de sensações importantes, com veríamos na semana que vem. O mais
interessante foi a reação de um outro aluno, que eu também situaria em seus
55-60 anos, que pediu ao primeiro que não insistisse nessas temáticas, já que
“isso aqui não é psicanálise, é neurociência”. O primeiro argumenta que
gostaria de ouvir o que a neurociência tem a dizer sobre a psicanálise. O
debate entre os dois não foi além, é verdade, mas saí dessa primeira aula com
uma sensação curiosa: na zona sul do Rio de Janeiro com uma assistência de
classe média, média-alta, alguém que fazia uso de um vocabulário
psicanalítico viu-se fora de lugar, silenciado. Este homem que falou em
‘neurose’ e ‘atenção flutuante’ não voltou para as aulas seguintes. Tampouco
o tema voltou à tona durante o resto do curso.
Cheguei a Porto Alegre para o Congresso Brasileiro de Psiquiatria de 2007.
Interessava-me a programação científica do congresso, mas o meu foco eram
os espaços de relacionamento entre a indústria farmacêutica e os participantes.
Não precisei ir muito longe: tão logo fiz a inscrição, fui ao próximo salão, um
espaço de estandes de laboratórios. Naquela primeira manhã, além de
conseguir coletar um grande número de folhetos e monografias sobre
medicamentos, fiquei atento a um painel pelo qual passei no estande do
Rivotril (Clonazepam), um medicamento indicado para vários transtornos de
ansiedade e de humor, mas que vem sendo indicado especialmente como
tratamento da ‘síndrome do pânico’. Era uma tela grande, com várias
pequenas latas de tinta próximas a ela. Além de outras formas, mais ou menos
irregulares – um duende, um gato, olhos, uma estrela, um coração, a palavra
“Rivotril” em destaque – lia-se na parte de baixo da tela a frase “viva a
psicanálise”. Tive o reflexo de fotografar esta imagem, porque achei
interessante a valoração da psicanálise no estande de um medicamento. Segui
a minha caminhada, abismado com os estandes, mas animado com o
rendimento deste contato para a minha pesquisa. Quando voltei, algumas
horas mais tarde, o quadro que encontrei era outro. As intervenções haviam se
multiplicado, a tela tinha menos espaços vazios, e da frase “viva a psicanálise”
havia sobrado somente o “viva”. O resto da frase estava coberto por novas
pinturas. Perguntei a um dos promotores se eles haviam trocado a tela. Ele me
disse que não, e explicou que se tratava de uma “obra conjunta”, que qualquer
participante poderia fazer uso das tintas e pintar alguma coisa. Comentei sobre
a frase que havia sumido, e ele me disse “é, só ficou o viva. deve ter sido
algum psiquiatra clínico que passou por aqui. e esse ‘rivotril’ não fomos nós,
As duas cenas se passaram em contextos que – isso me parece evidente – não
favoreciam um diálogo entre o vocabulário da neurociência / psiquiatria biológica e um
outro proveniente da psicanálise. De qualquer forma, são cenas que falam da convivência
de dois sistemas, ainda que um deles não tenha sido tomado (na verdade, tenha sido
literalmente calado ou apagado naqueles contextos) com um interlocutor, seja devido a
dinâmicas que se referem ao mercado de medicamentos, no segundo caso, seja porque o
espaço de um curso sobre neurociências em nada favorece um discurso com o
vocabulário da psicanálise, no primeiro. 12 Nestas duas cenas, vemos movimentos que
12 Bezerra Jr. (2000) afirma que a psiquiatria-biológica atual – que compartilha em muito do vocabulário da neurociência – deixou de lado a idéia de que a experiência humana comporta duas dimensões, por um lado
parecem confirmar um enfraquecimento do dualismo corpo/mente, com vem sendo
apontado por diversos autores. (Bezerra Jr., 2000; Russo, 2001; Russo e Ponciano, 2002)
Por certo, esse anunciado enfraquecimento faz com que a balança penda na direção do
corpo, ou, mais especificamente, do cérebro, no caso da experiência etnográfica aqui em
questão. Mas é preciso atentar que este movimento não se dá sem tensões e resistências;
os avanços de um paradigma fisicalista/cerebralista têm gerado respostas em diversos
campos das ciências humanas, como vimos aqui, assim como de profissionais da área psi
que não aderiram ao cérebro como uma nova natureza do ser humano.
O curioso é que a idéia de mente neste contexto não é apagada. O campo das
neurociências continua a fazer uso do conceito, mas se trata agora de uma entidade
totalmente subordinada ao funcionamento do cérebro. Essa ‘moderna biologia do
espírito’, nas palavras de Changeux (1985), inclusive retomam, como um aliado curioso,
dado o quadro atual, um certo Freud e mesmo quadros mais recentes da psicanálise, como
se vê na abertura do livro “O Homem Neuronal”:
O Homem Neuronal nasceu em 1979 de uma conversa com Jacques-Alain Miller e seus colegas na revista Ornicar?, que se converteu entretanto em L’Âne. Este diálogo vivo entre psicanalistas e neurobiologistas teve o mérito de demonstrar, contra toda a expectativa, que os protagonistas podiam dialogar e até entender-se. Esquecemos com freqüência que Freud foi neurólogo de profissão, mas, depois do seu Esquisse d’une Psychologie scientifique de 1895, os múltiplos avatares da psicanálise cindiram-na das suas bases propriamente biológicas. Este reatar do diálogo com as ciências “duras” será um indício de uma evolução das idéias, de um regresso às origens e porque não, até de um novo ponto de partida?(Changeux, 1985: 9)
A discussão feita neste artigo mostra que este “reatar do diálogo”, 25 anos depois do
texto original de Changeux, parece longe de acontecer. Ciências diferentes têm visões
diferentes do que seria uma “evolução das idéias” e mesmo de um “regresso às origens”.
física/orgânica e por outro moral/psicológica, e abraçou um novo paradigma de viés radicalmente fisicalista, “com a adoção de uma perspectiva monista caracterizado por um fisicalismo de corte especial, francamente reducionista” (p.161)
Talvez um limite a este possível diálogo tenha sido colocado por correntes como o
‘materialismo eliminativista’, que apresentei brevemente aqui. Ao que parece, a
convivência de noções como ‘cérebro’ e ‘mente’ existe no discurso neurocientífico com
uma hierarquia muito bem marcada, a qual grande parte dos praticantes de ciências ‘não-
duras’ não aderem. Em um nível, podemos falar da diluição do dualismo corpo/mente;
em outro, corpo e mente continuam a ser termos aos quais o paradigma neuro-
psiquiátrico faz referência, mas seria necessário localizá-los em uma relação hierárquica,
Pesquisas relacionadas ao cérebro e as políticas dos laboratórios farmacêuticos estão
sob fogo cerrado no campo do debate intelectual; no campo da divulgação midiática, por
outro lado, a balança pende violentamente a favor de uma certa noção de ‘pessoa’ que
incorpora valores e crenças que emanam do campo da neurociência.
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