Olavo bilac

PANÓPLIAS
A morte de Tapir A Gonçalves DiasGuerreiraPara a Rainha Dona Amélia, de PortugalA um grande homem A sesta de Nero O Incêndio de Roma O sonho de Marco AntônioLendo a IlíadaMessalinaA ronda noturnaDelenda Carthago! A Morte de Tapir
Uma coluna de ouro e púrpuras ondeantesSubia o firmamento. Acesos véus, radiantesRubras nuvens, do sol à viva luz, do poenteVinham, soltas, correr o espaço resplendente.
Foi a essa hora, - às mãos o arco possante, à cintaDo leve enduape a tanga em várias cores tinta,A aiucara ao pescoço, o canitar à testa, - - Que Tapir penetrou o seio da floresta.
Era de vê-lo assim, com o vulto enorme ao pesoDos anos acurvado, o olhar faiscando aceso,Firme o passo apesar da extrema idade, e forte.
Ninguém, como ele, em face, altivo e hercúleo, a morteTantas vezes fitou. Ninguém, como ele, o braçoErguendo, a lança aguda atirava no espaço.
Quanta vez, do uapi ao rouco troar, ligeiroComo a corça, ao rugir do estrépito guerreiroO tacape brutal rodando no ar, terrível,Incólume, vibrando os golpes, - insensívelÀs preces, ao clamor dos gritos, surdo ao prantoDas vitimas, - passou, como um tufão, o espanto,O extermínio, o terror atras de si deixando!Quanta vez do inimigo o embate rechaçandoPor si só, foi seu peito uma muralha erguida,Em que vinha bater e quebrar-se vencida De uma tribo contrária a onda medonha e bruta!Onde um pulso que, tal como seu pulso, à lutaCostumado, um por um, ao chão arremessasseDez combatentes? Onde um arco, que atirasseMais célere, a zunir, a fina flecha ervada?Quanta vez, a vagar na floresta cerrada,Peito a peito lutou com as fulvas onças bravas,E as onças a seus pés tombaram, como escravas,Nadando em sangue quente, e, em roda, o eco infiniteDespertando, ao morrer, com o derradeiro grito!.
Quanta vez! E hoje velho, hoje abatido! E o diaEntre os sangüíneos tons do ocaso decaía.
E era tudo em silêncio, adormecido e quedo.
De súbito um tremor correu todo o arvoredo:E o que há pouco era calma, agora é movimento,Treme, agita-se, acorda, e se lastima. O ventoFala: 'Tapir! Tapir! é finda a tua raça!"E em tudo a mesma voz misteriosa passa;As árvores e o chão despertam, repetindo:'Tapir! Tapir! Tapir! O teu poder é findo!" E, a essa hora, ao fulgor do derradeiro raioDo sol, que o disco de ouro, em lúcido desmaio,Quase no extremo céu de todo mergulhava,Aquela estranha voz pela floresta ecoavaNum confuso rumor entrecortado, insano.
Como que em cada tronco havia um peito humanoQue se queixava. E o velho, úmido o olhar, seguia.
E, a cada passo assim dado na mata, viaSurgir de cada canto uma lembrança. ForaDesta imensa ramada à sombra protetoraQue um dia repousara. Além, a arvore anosa,Em cujos galhos, no ar erguidos, a formosa,A doce Juraci a rede suspendera,- A rede que, com as mãos finíssimas, teceraPara ele, seu senhor e seu guerreiro amado!Ali. - Contai-o vós, contai-o, embalsamadoRetiro, ninhos no ar suspensos, aves, flores!.
Contai-o, o poema ideal dos primeiros amores,Os corpos um ao outro estreitamente unidos,Os abraços sem conta, os beijos, os gemidos,E o rumor do noivado, estremecendo a mata,Sob o plácido olhar das estrelas de prata.
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Juraci! Juraci! virgem morena e pura!Tu também! tu também desceste à sepultura!.
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E Tapir caminhava. Ante ele agora um rioCorria; e a água também, ao crebroDa corrente, a rolar, gemia ansiosa e clara:- "Tapir! Tapir! Tapir! Que é da veloz igara,Que é dos remos dos teus? Não mais as redes finasVêm na pesca sondar-me as águas cristalinas.
Ai! não mais beijarei os corpos luxuriantes,Os curvos seios nus, as formas palpitantesDas morenas gentis de tua tribo extinta!Não mais! Depois dos teus de brônzea pele tintaCom os sucos do urucu, de pele branca vieramOutros, que a ti e aos teus nas selvas sucederam.
Ai! Tapir! ai! Tapir! A tua raça é morta! -"E o índio, trêmulo, ouvindo aquilo tudo, absortaA alma em cismas, seguiu curvada a fronte ao peito.
Agora da floresta o chão não mais direitoE plano se estendia: era um declive; e quandoPelo tortuoso anfracto, a custo, caminhandoAo crepúsculo, pôde o velho, passo a passo,A montanha alcançar, viu que a noite no espaçoVinha a negra legião das sombras espargindo.
Crescia a treva. A medo, entre as nuvens luzindo,No alto, a primeira estrela o cálix de ouro abria.
Outra após cintilou na esfera imensa e fria.
Outras vieram. e, em breve, o céu, de lado a lado,Foi como um cofre real de pérolas coalhado.
Então, Tapir, de pé, no arco apoiado, a fronteErgueu, e o olhar passeou no infinito horizonte:Acima o abismo, abaixo o abismo, o abismo adiante.
E, clara, no negror da noite, viu, distante,Alvejando no vale a taba do estrangeiro.
Tudo extinto!. era ele o último guerreiro!E do vale, do céu, do rio, da montanha,De tudo que o cercava, ao mesmo tempo, estranha,Rouca, extrema, rompeu a mesma voz: - "É findaToda a raça dos teus: só tu és vivo ainda!Tapir! Tapir! Tapir! morre também com ela!Já não fala Tupã no ulular da procela.
As batalhas de outrora, os arcos e os tacapes,As florestas sem fim de flechas e acanguapes,Tudo passou! Não mais a fera inúbia à bocaDos guerreiros, Tapir, soa medonha e rouca.
É mudo o maracá. A tribo exterminada Dorme agora feliz na Montanha Sagrada.
Nem uma rede o vento entre os galhos agita!Não mais o vivo som de alegre dança, e a gritaDos pajés, ao luar, por baixo das folhagens,Rompe os ares. Não mais! As poracés selvagens,As guerras e os festins, tudo passou! É findaToda a raça dos teus. Só tu és vivo ainda! -" E num longo soluço a voz misteriosaExpirou. Caminhava a noite silenciosa,E era tranqüilo o céu; era tranqüila em roda,Imersa em plúmbeo sono, a natureza toda.
E, no tope do monte, era de ver erguidoO vulto de Tapir. Inesperado, um ruídoSeco, surdo soou, e o corpo do guerreiroDe súbito rolou pelo despenhadeiro.
E o silêncio outra vez caiu.
Nesse momento, Apontava o luar no curvo firmamento.
A Gonçalves Dias
Celebraste o domínio soberanoDas grandes tribos, o tropel frementeDa guerra bruta, o entrechocar insanoDos tacapes vibrados rijamente, O maracá e as flechas, o estridenteTroar da inúbia, e o canitar indiano.
E, eternizando o povo americano,Vives eterno em teu poema ingente.
Estes revoltos, largos rios, estasZonas fecundas, estas secularesVerdejantes e amplíssimas florestas Guardam teu nome: e a lira que pulsasteInda se escuta, a derramar nos aresO estridor das batalhas que contaste.
Guerreira
É a encarnação do mal. Pulsa-lhe o peitoErmo de amor, deserto de piedade.
Tem o olhar de uma deusa e o altivo aspeitoDas cruentas guerreiras de outra idade.
O lábio ao ríctus do sarcasmo afeito Crispa-se-lhe num riso de maldade, Quando, talvez, as pompas, com despeito, Recorda da perdida majestade.
E assim, com o seio ansioso, o porte erguido, Corada a face, a ruiva cabeleira Sobre as amplas espáduas derramada, Faltam-lhe apenas a sangrenta espada Inda rubra da guerra derradeira, E o capacete de metal polido.
Para a Rainha Dona Amélia de Portugal
Um rude resplendor, de rude brilho, toucaE nimba o teu escudo, em que as quinas e a esferaGuardam, ó Portugal! a tua glória austera,Feita de louco heroísmo e de aventura louca.
Ver esse escudo é ver a Terra toda, poucaPara a tua ambição; é ver Afonso, à esperaDos mouros, em Ourique; e, em redor da galeraDo Gama, ouvir do mar a voz bramante e rouca.
Mas no vosso brasão, Borgonha! Avis! Bragança! De ouro e ferro, encerrando o orgulho da conquista, Faltava a suavidade e o encanto de umaflor; E eis sobre ele pairando o alvo lírio de França, Que lhe deu, flor humana, alma gentil de artista, Um sorriso de graça e um perfume de amor.
A um Grande Homem
Heureuse au fond du boisIa source pauvre et pure!Lamartine.
Olha: era um tênue fioDe água escassa. Cresceu Tornou-se em rio Depois. Roucas, as vagasEngrossa agora, e é túrbido e bravio, Roendo penedos, alagando plagas.
Humilde arroio brando!. Nele, no entanto, as flores, inclinandoO débil caule, inquietas Miravam-se. E, em seu claro espelho, o bando Se revia das leves borboletas.
Tudo, porém: - cheirosas Plantas, curvas ramadas rumorosas,Úmidas relvas, ninhos Suspensos no ar entre jasmins e rosas, Tardes cheias da voz dos passarinhos, -Tudo, tudo perdido Atrás deixou. Cresceu. Desenvolvido,Foi alargando o seio, E do alpestre rochedo, onde nascidoTinha, crespo, a rolar, descendo veio.
Cresceu. Atropeladas, Soltas, grossas as ondas apressadasEstendeu largamente, Tropeçando nas pedras espalhadas, No galope impetuoso da corrente.
Cresceu. E é poderoso:Mas enturba-lhe a face o lodo ascoso. É grande, é largo, é forte:Mas, de parcéis cortado, caudaloso, Leva nas dobras de seu manto a morte.
Implacável, violento, Rijo o vergasta o latego do vento.
Das estrelas, caindo Sobre ele em vão do claro firmamento Batem os raios límpidos, luzindo.
Nada reflete, nada!Com o surdo estrondo espanta a ave assustada; É turvo, é triste agora.
Onde a vida de outrora sossegada? Onde a humildade e a limpidez de outrora?.
Homem que o mundo aclama! Semideus poderoso, cuja famaO mundo com vaidade De eco em eco no século derrama Aos quatro ventos da celebridade! Tu, que humilde nasceste, Fraco e obscuro mortal, também crescesteDe vitória em vitória, E, hoje, inflado de orgulhos, ascendesteAo sólio excelso do esplendor da glória! Mas, ah! nesses teus dias De fausto, entre essas pompas luzidias,- Rio soberbo e nobre! Hás de chorar o tempo em que vivias Como um arroio sossegado e pobre.
A Sesta de Nero
Fulge de luz banhado, esplêndido e suntuoso,O palácio imperial de pórfiro luzenteE mármor da Lacônia. O teto caprichosoMostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.
Nero no toro ebúrneo estende-se indolente.
Gemas em profusão do estrágulo custosoDe ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente,Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.
Formosa ancila canta. A aurilavrada lira Em suas mãos soluça. Os ares perfumando, Arde a mirra da Arábia em recendente pira.
Formas quebram, dançando, escravas em coréia.
E Neto dorme e sonha, a fronte reclinandoNos alvos seios nus da lúbrica Popéia.
O Incêndio de Roma
Raiva o incêndio. A ruir, soltas, desconjuntadas,As muralhas de pedra, o espaço adormecidoDe eco em eco acordando ao medonho estampido,Como a um sopro fatal, rolam esfaceladas.
E os templos, os museus, o Capitólio erguidoEm mármor frígio, o Foro, as erectas arcadasDos aquedutos, tudo as garras inflamadasDo incêndio cingem, tudo esbroa-se partido.
Longe, reverberando o clarão purpurino, Arde em chamas o Tibre e acende-se o horizonte.
- Impassível, porém, no alto do Palatino, Neto, com o manto grego ondeando ao ombro, assomaEntre os libertos, e ébrio, engrinaldada a fronte,Lira em punho, celebra a destruição de Roma.
O Sonho de Marco Antônio
Noite. Por todo o largo firmamentoAbrem-se os olhos de ouro das estrelas.
Só perturba a mudez do acampamentoO passo regular das sentinelas.
Brutal, febril, entre canções e brados,Entrara pela noite adiante a orgia;Em borbotões, dos cântaros lavradosJorrara o vinho. O exército dormia.
Insone, entanto, vela alguém na tendaDo general. Esse, entre os mais sozinho,Vence a fadiga da batalha horrenda,Vence os vapores cálidos do vinho.
Torvo e cerrado o cenho, o largo peitoDa couraça despido e arfando ansioso,Lívida a face, taciturno o aspeito,Marco Antônio medita silencioso.
Da lâmpada de prata a luz escassaResvala pelo chão. A quando e quando,Treme, enfunada à viração que passa,A cortina de púrpura oscilando.
O general medita. Como, soltasDo álveo de um rio transvazado, as águasCrescem, cavando o solo, - assim, revoltas,Fundas a alma lhe vão sulcando as mágoas.
Que vale a Grécia, e a Macedônia, e o enormeTerritório do Oriente, e este infinitoE invencível exército que dorme?Que doces braços que lhe estende o Egito!.
Que vença Otávio! e seu rancor profundoLeve da Hispânia à Síria a morte e a guerra!Ela é o céu. Que valor tem todo o mundo, Ele é valente e ela o subjuga e o doma.
Só Cleópatra é grande, amada e bela!Que importa o império e a salvação de Roma?Roma não vale um só dos beijos dela!.
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Assim medita. E alucinado, loucoDe pesar, com a fadiga em vão lutando,Marco António adormece a pouco e pouco,Nas largas mãos a fronte reclinando.
A harpa suspira. O melodioso canto,De uma volúpia lânguida e secreta,Ora interpreta o dissabor e o pranto,Ora as paixões violentas interpreta.
Amplo dossel de seda levantina,Por colunas de jaspe sustentado,Cobre os cetins e a caxemira finaDo régio leito de ébano lavrado.
Move o leque de plumas uma escrava.
Vela a guarda lá fora. Recolhida,Os pétreos olhos uma esfinge cravaNas formas da rainha adormecida.
Mas Cleópatra acorda. E tudo, ao vê-laAcordar, treme em roda, e pasma, e a admira:Desmaia a luz, no céu descora a estrela,A própria esfinge move-se e suspira.
Acorda. E o torso arqueando, ostenta o lindoColo opulento e sensual que oscila.
Murmura um nome e, as pálpebras abrindo,Mostra o fulgor radiante da pupila.
Ergue-se Marco Antônio de repente.
Ouve-se um grito estrídulo, que soaO silêncio cortando, e longamentePelo deserto acampamento ecoa.
O olhar em fogo, os carregados traçosDo rosto em contração, alto e direitoO vulto enorme, - no ar levanta os braços,E nos braços aperta o próprio peito.
Olha em torno e desvaira. Ergue a cortina,A vista alonga pela noite afora.
Nada vê. Longe, à porta purpurinaDo Oriente em chamas, vem raiando a aurora.
E a noite foge. Em todo o firmamentoVão se fechando os olhos das estrelas:Só perturba a mudez do acampamentoO passo regular das sentinelas.
Lendo a Ilíada
Ei-lo, o poema de assombros, céu cortadoDe relâmpagos, onde a alma potenteDe Homero vive, e vive eternizadoO espantoso poder da argiva gente.
Arde Tróia. De rastos passa atadoO herói ao carro do rival, e, ardente,Bate o sol sobre um mar ilimitadoDe capacetes e de sangue quente.
Mais que as armas, porém, mais que a batalhaMais que os incêndios, brilha o amor que ateiaO ódio e entre os povos a discórdia espalha: - Esse amor que ora ativa, ora asserena A guerra, e o heróico Páris encadeia Aos curvos seios da formosa Helena.
Messalina
Recordo, ao ver-te, as épocas sombrias Do passado. Minh'alma se transporta À Roma antiga, e da cidade morta Dos Césares reanima as cinzas frias; Triclínios e vivendas luzidiasPercorre; pára de Suburra à porta,E o confuso clamor escuta, absorta,Das desvairadas e febris orgias.
Aí, num trono erecto sobre a ruína De um povo inteiro, tendo à fronte impura O diadema imperial de Messalina, Vejo-te bela, estátua da loucura! Erguendo no ar a mão nervosa e fina, Tinta de sangue, que um punhal segura.
A Ronda Noturna
Noite cerrada, tormentosa, escura, Lá fora. Dorme em trevas o convento.
Queda imoto o arvoredo. Não fulgura Uma estrela no torvo firmamento.
Dentro é tudo mudez. Flébil murmura,De espaço a espaço, entanto, a voz do vento:E há um rasgar de sudários pela altura,Passo de espectros pelo pavimento.
Mas, de súbito, os gonzos das pesadasPortas rangem. Ecoa surdamenteLeve rumor de vozes abafadas.
E, ao clarão de uma lâmpada tremente, Do claustro sob as tácitas arcadas Passa a ronda noturna, lentamente.
Defenda Carthago!
Fulge e dardeja o sol nos amplos horizontesDo céu da África. Ao largo, em plena luz, dos montesDestacam-se os perfis. Tremulamente ondeia,Vasto oceano de prata, a requeimada areia.
O ar, pesado, sufoca. E, desfraldando ovantesDas bandeiras ao vento as pregas ondulantes,Desfilam as legiões do exército romanoDiante do general Cipião Emiliano.
Tal soldado sopesa a dava de madeira;Tal, que a custo sofreia a cólera guerreira,Maneja a bipenata e rude machadinha.
Este, à ilharga pendente, a rútila bainhaLeva do gládio. Aquele a poderosa maçaCarrega, e às largas mãos a ensaia. A custo passa,Curvado sob o peso e de fadiga aflando,De guerreiros um grupo, os aríetes levando.
Brilham em confusão cristados capacetes.
Cavaleiros, contendo os ardidos ginetes,Solta a clâmide ao ombro, ao braço afivelado O côncavo broquel de cobre cinzelado, Brandem o pílum no ar. Ressona, a espaços, rouca, A bélica bucina. A tuba cava à bocaDos eneatores troa. Hordas de sagitáriosVêem-se, de arco e carcás armados. O ouro e os váriosOrnamentos de prata embutem-se, em tauxiasDe um correto lavor, nas armas luzidiasDos generais. E, ao sol, que, entre nuvens, cintila,Em torno de Cartago o exército desfila.
Mas, passada a surpresa, às pressas, a cidadeAos escravos cedera armas e liberdade,E era toda rumor e agitação. FundindoTodo o metal que havia, ou, céleres, brunindoEspadas e punhais, capacetes e lanças,Viam-se a trabalhar os homens e as crianças.
Heróicas, abafando os soluços e as queixas, As mulheres, tecendo os fios das madeixas, Cortavam-nas.
Cobrindo espáduas deslumbrantes,Cercando a carnação de seios palpitantesComo véus de veludo, e provocando beijos,Excitaram paixões e lúbricos desejosEssas tranças da cor das noites tormentosas.
Quantos lábios, ardendo em sedes luxuriosas,As tocaram outrora entre febris abraços!.
Tranças que tanta vez - frágeis e doces laços! -Foram cadeias de ouro invencíveis, prendendoAlmas e corações, - agora, distendendoOs arcos, despedindo as setas aguçadas,Iam levar a morte. - elas, que, perfumadas,Outrora tanta vez deram a vida e o alentoAos presos corações!.
Triste, entretanto, lento, Ao pesado labor do dia sucederaO silêncio noturno. A treva se estendera:Adormecera tudo. E, no outro dia, quandoVeio de novo o sol, e a aurora, rutilando,Encheu o firmamento e iluminou a terra,A luta começou.
As máquinas de guerraMovem-se. Treme, estala, e parte-se a muralha,Racha de lado a lado. Ao clamor da batalhaEstremece o arredor. Brandindo o pílum, prontas,Confundem-se as legiões. Perdido o freio, às tontas,Desbocam-se os corcéis. Enrijam-se, esticadasNos arcos, a ringir, as cordas. Aceradas,Partem setas, zunindo. Os dardos, sibilando,Cruzam-se. Éneos broquéis amolgam-se, ressoando,Aos embates brutais dos piques arrojados.
Loucos, afuzilando os olhos, os soldados,Presa a respiração, torvo e medonho o aspeito,Pela férrea squammata abroquelado o peito,Se escruam no furor, sacudindo os macetes.
Não param, entretanto, os golpes dos aríetes,Não cansam no trabalho os musculosos braçosDos guerreiros. Oscila o muro. Os estilhaçosSaltam das pedras. Gira, inda uma vez vibradaNo ar, a máquina bruta. E, súbito, quebrada,Entre o insano clamor do exército e o frementeRuído surdo da queda, - estrepitosamenteRui, desaba a muralha, e a pétrea mole roda,Rola, remoinha, e tomba, e se esfacela toda.
Rugem aclamações. Como em cachões, furioso,Parte os diques o mar, roja-se impetuoso,As vagas encrespando acapeladas, brutas,E inunda povoações, enche vales e grutas,E vai semeando o horror e propagando o estrago, Tal o exército entrou as portas de Cartago.
O ar os gritos de dor e susto, espaço a espaço,Cortavam. E, a bramir, atropelado, um passo O invasor turbilhão não deu vitorioso,Sem que deixasse atrás um rastro pavorosoDe feridos. No ocaso, o sol morria exangue:Como que refletia o firmamento o sangueQue tingia de rubro a lâmina brilhanteDas espadas. Então, houve um supremo instante,Em que, cravando o olhar no intrépido africanoAsdrúbal, ordenou Cipião Emiliano:"- Deixa-me executar as ordens do Senado!Cartago morrerá: perturba o ilimitado Poder da invicta Roma. Entrega-te! -"Orgulhoso,A fronte levantando, ousado e rancoroso, Disse o cartaginês:"- Enquanto eu tiver vida,Juro que não será Cartago demolida!Quando o incêndio a envolver, o sangue deste povoHá de apagá-lo. Não! Retira-te! -" De novoFalou Cipião:Atende, Asdrúbal! Por mais forteQue seja o teu poder, há de prostrá-lo a morte!Olha! A postos, sem conta, as legiões de Roma,Que Júpiter protege e que o pavor não doma,Vão começar em breve a mortandade infrene!Entrega-te! -""- Romano, escuta-me! (solene,O outro volveu, e a raiva em sua voz rugia)Asdrúbal é o irmão de Aníbal. Houve um diaEm que, ante Aníbal, Roma estremeceu vencidaE tonta recuou de súbito ferida.
Ficaram no lugar da pugna, ensangüentados,Mais de setenta mil romanos, trucidadosPelo esforço e valor dos púnicos guerreiros;Seis alqueires de anéis dos mortos cavaleirosCartago arrecadou. Verás que, como outrora,Do eterno Baal-Moloch a proteção agoraTeremos. A vitória há de ser nossa. Escuta:Manda que recomece a carniceira luta! -"E horrível, e feroz, durante a noite e o dia,Recomeçou a luta. Em cada casa haviaUm punhado de heróis. Seis vezes, pela faceDo céu, seguiu seu curso o sol, sem que parasseO medonho estridor da sanha da batalha.
Quando a noite descia, a treva era a mortalhaQue envolvia, piedosa, os corpos dos feridos.
Rolos de sangue e pó, blasfêmias e gemidos,Preces e imprecações. As próprias mães, entanto,Heróicas na aflição, enxuto o olhar de pranto,Viam cair sem vida os filhos. CombatentesHouve, que, não querendo aos golpes inclementesDo inimigo entregar os corpos das crianças,Matavam-nas, erguendo as suas próprias lanças.
Por fim, quando de todo a vida desertandoFoi a extinta cidade, e, lúgubre, espalmandoAs asas negras no ar, pairou sinistra e horrendaA morte, teve um fim a peleja tremenda,E o incêndio começou.
Fraco e medroso, o fogoÀ branda viração tremeu um pouco, e logo,Inda pálida e tênue, ergueu-se. Mais violento,Mais rápido soprou por sobre a chama o vento:E o que era labareda, agora ígnea serpenteGigantesca, estirando o corpo, de repenteDesenrosca os anéis flamívomos, abraçaToda a cidade, estala as pedras, cresce, passa,Rói os muros, estronda, e, solapando o solo,Os alicerces broca, e estringe tudo. Um roloDe plúmbeo e denso fumo enegrecido em tornoSe estende, como um véu, do comburente forno.
Na horrorosa eversão, dos templos arrancado,Vibra o mármore, salta; abre-se, estilhaçado,Tudo o que o incêndio aperta. E a fumarada cresceSobe vertiginosa, espalha-se, escureceO firmamento. E, sobre os restos da batalha,Arde, voraz e rubra, a colossal fornalha.
Mudo e triste Cipiáo, longe dos mais, no entanto, Deixa livre correr pelas faces o pranto.
É que, - vendo rolar, num rápido momentoPara o abismo do olvido e do aniquilamentoHomens e tradições, reveses e vitórias,Batalhas e troféus, seis séculos de glóriasNum punhado de cinza -, o general previaQue Roma, a invicta, a forte, a armipotente, haviaDe ter o mesmo fim da orgulhosa Cartago.
E, perto, o precipitar estrepitoso e vagoD0 incêndio, que lavrava e inda rugia ativo,Era como o rumor de um pranto convulsivo.

Source: http://www.santoandre.sp.gov.br/pesquisa/ebooks/344612.pdf

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