Nós só percebemos o mundo através das representações que dele podemos fazer. Por um lado, a ciência não cessa de revisar suas hipóteses; por outro, os mitos e as religiões moldam suas verdades pela realidade enigmática, dis- tribuem receitas cobrando submissão. O pensamento racional, ao preço de uma reelaboração constante, faz uso da lucidez e do acesso à liberdade, visan- do certezas, recorrendo à inteligência crítica; o pensamento religioso o faz pela adesão emocional. Na perspectiva terapêutica, essa última tem efeitos certos para o sujeito que sofre, para quem é mais interessante reconstituir os processos do que rejeitar seus argumentos. Percebemos que estes passam por etapas muito comparáveis, não importando se o ponto de referência das cu- ras é científico, religioso ou mágico. Palavras-chave: Crença; Pensamento racional; Terapia; Processo de cura. PENSAR OU ACREDITAR
Sabemos, há muito tempo, que tudo que nos rodeia não passa de ilusão dos sentidos
expostos a enganos. Nem Freud nem Marx eram necessários para denunciar, portrás da religião, uma ilusão, um ópio do povo, instrumento de resignação e de alie-
nação. A consciência que nós temos da realidade é permeada de dúvida cartesiana: nossossentidos podem nos enganar. O sentido “certo” seria um fio fino que se desenrola até ocogito. Mas quem, no argumento cartesiano, o está segurando na outra ponta, senãoDeus?, e Deus, em sua infinita sabedoria, nada mais seria, fora toda prova, do que umacriação de nosso espírito. Nesse caso, o fio é uma serpente que morde seu próprio rabo.
Nós só temos, a respeito das coisas, representações ligadas às nossas possibilidades
e particularidades perceptivas. Nós vemos cores que não existem em si, mas em funçãode nossa retina. Nossa razão, bem escorada na rampa da lógica, nos ajuda a escalar teoriasque servem por um tempo para depois se mostrarem falsas ou insuficientes, sendo preciso
• Texto recebido em março de 2002 e aprovado para publicação em maio de 2002. * Traduzido do original “Certitude, croyance, illusion – les pratiques de l’illusion” por Nina de Melo Franco.
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
Certeza, crença, ilusão as práticas da ilusão
abandoná-las em benefício de outras. E sabemos ser esse um ciclo sem-fim: a escada dodedutível se perde no infinito, a alguns segundos do big bang, onde tudo pode ser de novoquestionado.
Nós só conhecemos segundo as categorias de nosso entendimento, tão imperativas
quanto nossos bastonetes e nossas pirâmides. Ora, tão pouco seguros de nossas aquisições“científicas”, banhadas na relatividade, restaria alguma coisa que não seja objeto decrença, ou pelo menos de aposta, como nos propõe Pascal, confrontado à incerteza?
Para nós é muito fácil louvar a ciência e fazer pouco caso dos artigos de fé. Não falo
das santas virgens de plástico, mas das divindades, dos espíritos, dos anjos e demônios detodo gênero, aos quais os povos se agarram para poderem explicar suas origens, o an-damento do mundo, bem como para aceitar certas regras de vida. Para que servem mitose religiões? Certamente, como afirma Durkheim, para fornecer valores e normas que for-jam o laço social. Freud não o desmente, Lacan menos ainda. A religião fornece a Auto-ridade celeste e paterna que subordina uma sociedade à Lei e a orienta em direção à ci-vilização, sob as condições constrangedoras da renúncia e da sublimação.
As religiões, efetivamente, fornecem regras muitas vezes severas, quando os padres
exigem a mão à palmatória. Mas não podemos esquecer os mitos que as fundam, pois elesservem para dar coerência narrativa às notáveis desordens da natureza, ao mistério da exis-tência, ao modo como surgem, como vão e como são as coisas, às inquietantes estranhezasdo acaso e da necessidade, ao desconhecido das origens e dos fins, ao emaranhado das di-ferenças e das semelhanças.
Os mitos dão a tudo isso representações aceitáveis, a partir das quais os humanos
podem tomar decisões, fixar modos de ação e de conduta, consultar doutos exegetas paradefinir os rituais a respeitar, as lições a aprender, os valores a escolher. Tudo fica explicado:a vida, a morte, a diferença, as contradições. O absurdo nada mais é que aparência, eleé apenas o desconhecimento de uma verdade bem guardada, intangível, embora acessívelàqueles que confiam, aos eleitos. Para estes, um véu da Verdade foi levantado. Assim, oque nós consideramos ilusão foi chamado por outros de Revelação e Ensinamento.
Sem dúvida, os acasos e as necessidades não sofreram nenhuma reviravolta, em fun-
ção disso. Qualquer que seja a religião ou o mito, os humanos continuam expostos às mes-mas dificuldades, embora com o sentimento de que há uma ordem determinada em al-gum lugar, à qual eles têm de se submeter, pois nela sua existência encontra sentido.
Atribui-se à religião a função de acalmar a angústia existencial, enquanto a dúvida
lancinante é vista como fruto de um pensamento rebelde que pretende recusar a sub-missão e continuar interrogando as coisas. Assim se opõem o pensamento e a crença.
Ora, a atividade do pensamento, como um todo, não se presta justamente a ela-
borar as representações adequadas para pensar o mundo e agir sobre ele? Na verdade, ape-nas os critérios mudam entre o pensamento científico e o pensamento religioso. Mas issoresume tudo? Não, pois o primeiro se afirma na razão, enquanto o segundo se baseia nacrença. Mas ambos têm como objetivo explicar, um visando a ação, outro visando as con-dutas, o que muitas vezes se confunde. Um se define como uma postura crítica que só se
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
dobra ao obstáculo comprovado da realidade, o outro é adesão a uma Palavra ou mesmouma experiência transcendente.
Devemos então opor de maneira simplista pensamento científico e pensamento re-
ligioso? Não, pois existem modos de pensamento que os entrelaçam de maneira paradoxalcomo, por exemplo, o pensamento imaginário. Este constrói ficções nas quais não temosnecessariamente que acreditar, mas que oferecem, de maneira efêmera (como durante operíodo de uma leitura), uma pseudo-realidade na qual não só temos prazer em mer-gulhar, mas que pode ter um efeito de revelação. A obra não apresentaria um real (no sen-tido lacaniano) mais verdadeiro que a realidade de superfície, verdade não percebida emum primeiro momento por falta de tempo ou de atenção? A obra é, então, esse tempo re-encontrado, restituído a nós por um autor que tomou para si a tarefa de procurar esse tempoperdido. Podemos, pois, acreditar não acreditando, reconhecer sem conhecer e, assim fa-zendo, ganhar uma dose extra de verdade.
O pensamento científico e o pensamento religioso falam de certeza: o primeiro,
graças à verificação de uma materialidade, segundo as regras da experimentação, a exigênciada não-falsibilidade, a virtude das demonstrações (história) ou a declinação matemática.
Se somos obrigados a acreditar, em decorrência da natureza fluida e complexa do
objeto, atemo-nos às demonstrações e à observação, mas correndo o risco de sermos sus-peitos de alterar, conforme nossa conveniência, uma realidade que, no entanto, devería-mos considerar sempre construída, jamais dada. Esta é a tragédia das ciências humanas,principalmente as ciências “clínicas”, mas que também não poupa historiadores e outros. O pensamento torna-se interpretativo, evidentemente, a partir de materiais recolhidos,conforme uma metodologia controlada e armada de referências teóricas e conceituais queencontram sua verificação nos efeitos de aplicação (a prática, a cura), mas só neles. Isso,enquanto esperamos que uma outra prática, com outras referências, obtenha efeitos si-milares, ou esteja disposta a se refugiar em um processo de conhecimento introspectivo(subjetivo) que se aproxima, no fim das contas, da meditação e do processo religioso. Asescolas de pensamento tornam-se igrejas (ou seitas). Os tratamentos se tornam rituais oupráticas místicas. A cura terapêutica desliza para a cura xamânica. Largamos as rampas dacientificidade para entregarmo-nos às promessas da transcendência.
São múltiplas as passarelas entre a razão e a crença. A certeza daquele que crê vem
de uma convicção íntima, experiencial, de uma emoção que tem o efeito da palavra. Ele“é falado” por uma palavra exterior, não articulada, portanto não discutível, sentida comouma coincidência consigo mesmo. A verdade sobre si mesmo é, pois, captada sem pa-lavras. Essa coincidência, vinda do testemunho dos que crêem e que tentaram descrevê-la, particularmente os místicos, é uma fulgurância, uma chama que queima, é do registrode uma condensação emocional (caso entendamos a emoção como uma aliança entre sen-sação e afeto), ela é indizível, e é sem dúvida por isso que a ela atribuímos esse Nome deDeus que alguns consideram, aliás, impronunciável (na lógica de um deus infinito quenão aceitaria ser rotulado, nem mesmo pelo nome), ela é coincidência com o grande Ou-tro que não tem realidade material.
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
Certeza, crença, ilusão as práticas da ilusão
É ao gozo que se pode comparar melhor o êxtase do crente: o indizível, a violência,
a revulsão da falta, a coincidência com o outro. Bem-aventurada ilusão ou loucura procu-rada sem cessar, perdida, reencontrada. O que é reencontrado não é mais o Tempo, mas oSentido, absoluto, garantido por ele próprio. Deus é o equivalente à pequena madeleine deProust, ou melhor, ele é a Grande Madeleine: a chave que abre as portas do sentido perdido.
Eu disse “coincidência” como outros dizem “estranho!”, palavra que pode nos dei-
xar perplexos. E, no entanto, é a característica desse sentimento de evidência que fundaa experiência mística: uma colagem da emoção e da inteligência com aquilo a que não sepode dar forma. O enigma sobre si mesmo se resolve, num piscar de olhos, em um brilhode transcendência, que o crente chama de Deus ou de Anjo, Revelação ou resolução. Masnão há palavras para dizer qualquer coisa a mais: aqueles que tentaram dizer algo, quandosão cristãos, falam de amor, outros falam de iluminação, de despertar, de experiência ines-quecível. A imagem de luz, na maioria das vezes, aí está presente.
Santa Teresa de Ávila, em seu relato da Transverberação, recorre a uma metáfora
carnal da experiência espiritual, que seria também absolutamente adequada às manifes-tações eróticas.
É claro que nem todos aqueles que crêem passam pela experiência do êxtase, mas
todos se valem da linguagem da iluminação, todos se dizem possuidores de uma luz in-terior, mas uma luz que vem de outro lugar. O esclarecimento e o conhecimento não são,nesse caso, decorrentes da inteligência, mas do sentimento. A fé aparece então como umaadesão indiscutível a uma palavra não formulada, apenas sentida, já sempre presente. Daía emoção renovada para alguns (“alegria, mais alegria, lágrimas de alegria!”), daí os sen-timentos de felicidade ou de paz para outros e, muitas vezes, uma certeza tão definitivaque só pode descambar no fanatismo, como o seu produto mais que natural.
Aqui seria conveniente lembrar que, no campo da ciência, fora o momento raro da
descoberta, o processo científico não traz esse efeito de êxtase prolongado ou renovável,constituído por um núcleo duro. Costuma-se dizer que os maiores místicos passam pelanoite da alma, pela aridez, por uma frigidez mais dolorosa que a aphanisis.1 Podem poisocorrer estases ou entorpecimentos na elação. Isso significa que, se Eros foi majoritaria-mente convocado, ao mesmo tempo a certeza absoluta que retém Thanatos não sofre maisa esperada baixa de tensão, ela se inscreve na morte inflexível.
Aquele que não crê guarda sua frieza de mármore e julga com severidade tudo o que
se diz ser da ordem do milagroso e do indizível. Diferente do fenômeno científico, a expe-riência da crença é intransmissível, a fé não se comunica, a menos que o discurso saiba con-vencer, ou seja, que ele faça brotar a emoção que impele em direção ao ideal prometido. Mas isso é uma questão de adesão ou de transferência, não de argumentação. A crença épartilhada na confiança e depois na obediência. E é exatamente por isso que costumamospreferir o pensamento racional ao pensamento religioso.
1 O termo grego aphanisis remete a algumas noções como desaparecimento, supressão, aniquilamento, dis-
tanciamento. Na clínica, ele se refere a um medo mórbido de perda da potência sexual. [NT]
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
Por que não se poderiam considerar como iguais o pensamento religioso e o pen-
samento racional? Perguntemos: será que os racionalistas, ao alegar que só acreditam na-quilo que é comprovado, são mais felizes que os fiéis que encontram, em sua fé, a es-perança e a consolação? Seriam eles mais felizes que esses fiéis, para os quais tudo tem umsentido e uma finalidade, para os quais existe até mesmo um outro mundo no qual a con-tradição e o sofrimento são abolidos, no qual se reencontra o grande Todo ou o coro dosanjos, sob a condição, é claro, de estarem munidos dos bons viáticos e de manter seus Es-píritos conciliados? Pois os racionais são obrigados a se virar com o que têm em mãos, con-frontados a uma realidade que se mostra dolorosa e contraditória: sofrimento, finitude,acaso e necessidade. Será que as alegrias do pensamento podem compensar tudo isso? Seráque lhes restaria algum privilégio?
Sim, resta a lucidez. Mas será que vale mais a pena ficar à deriva e ser feliz que sofrer
na lucidez? (Nesse caso, subentende-se que a lucidez não é compatível com as alegrias davida e as crenças trazem infalivelmente a felicidade). Lucidez quer dizer capacidade deanálise crítica. “Só considerar verdadeiro aquilo que…”. Se isso não traz mais felicidadedo que a fé (apesar de todos os desmentidos que essa última possa constatar, em razão doestado perseverante da miséria do mundo), sem dúvida proporciona a altivez ou o orgulhoque são próprios do humano.
O homo sapiens, sapiens se pensa pensante. Ele se mantém de pé e firme, diante do
absurdo e do necessário, como alguém que conhece seu lugar e encara o abismo de frente. Ao aceitar a vida e a finitude, ele ganha gratuidade e liberdade: “É absurdo, mas eu topo,eu o quero, eu quero ultrapassá-lo, fazer dele o que eu quiser”. O homem é o único, entretodos os seres vivos, que pode se pensar. E se é do pensamento que ele tira a sua liberdade,é melhor aproveitar. Enquanto isso, o crente se submete à esperança alimentada em umAlém que não passa de um postulado, um Além cuja lei ele aceita e pelo qual ele se deixaser guiado, pois suas próprias ficções se voltam contra ele.
Qual deles é preferível, filosoficamente falando? Ora, nem todo mundo quer ser
filósofo nem quer assumir aquilo que é específico do humano, a não ser no sentimentode superioridade muitas vezes marcado pelo desprezo daqueles que supostamente são in-feriores. SOFRER, CURAR
Quando consideramos o ponto de vista terapêutico, e se temos por objetivo aliviar
o sofrimento, responder à demanda do paciente e das pessoas que o rodeiam, suprimindosintomas que o incomodam (mal-estar, angústia, inibições) e o impedem de viver por sie com os outros, no pleno emprego de suas capacidades, devemos então privilegiar as prá-ticas de referência científica ou aceitar recorrer ao irracional, às crenças, em sua di-versidade exótica?
A quem agrada a cientificidade? A quem ela dá segurança, a não ser àquele que se
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
Certeza, crença, ilusão as práticas da ilusão
ocupa em curar? O paciente prefere a prática que alivia sua dor, não importando se o alívioé real ou ilusório. O efeito placebo é tão bem vivido por ele quanto o tratamento certificadopela ciência. Aliás, esse efeito não tem sua própria cientificidade? Em termos de processo,são os encadeamentos da experiência, os itinerários da mudança que são científicos, nãoseu substrato objetivo. Se a pílula homeopática dá resultados, é o processo que a torna efi-ciente que interessa compreender, ainda que ele seja puramente subjetivo e ilusório, e nãoa denúncia da ausência de qualquer realidade orgânica objetiva. Quanto ao paciente, oque lhe interessa é o efeito benéfico que ele sente, ainda que as estatísticas contradigama realidade de sua cura.
O que é a cura, sobretudo quando se trata de mal-estar e de sofrimento (distinto
da dor, mas isso nem sempre é verdade) senão o sentimento de estar bem? Para alcançaresse sentimento e a sua representação não serão necessários métodos que permitam trans-formá-los, métodos que, por sua vez, também se oferecem como sistema de representaçãoou manipulação de sinais? Pois isso é tudo que o imaginário demanda.
Poder-se-ia então dizer: “Isso abre a porta a todos os charlatanismos”. É claro, mas
os riscos são os mesmos, em relação aos erros médicos, erros de diagnóstico ou de tra-tamento. Às desonestidades dos primeiros correspondem as incompetências dos segun-dos. Fazer uma consulta e submeter-se a um tratamento sempre comporta riscos.
“Vejamos! Mandam que eles acendam três velas e sacrifiquem uma pomba para
obter a cura. Que rigor há nisso? Eles são enganados e, enquanto isso, não fazem um tra-tamento sério! Eles apenas são levados a acreditar que… não se vai ao fundo do proble-ma!”. Tudo bem. Mas iriam eles ao fundo do problema? E qual é a garantia de que é pos-sível tratar esse “fundo do problema” e de que isso trará a cura? Estamos suficientementeavisados de que a significação só passa pela via da linguagem? Não estaríamos nos es-quecendo das virtudes da metáfora, através dos agenciamentos simbólicos, das encena-ções onde a linguagem falada só entra como mais um dos elementos?
Não estou pregando o obscurantismo e a magia, mas acredito que se devem exa-
minar as práticas em termos de sistemas de representação, pois todo sistema deve ser con-siderado em função do sistema imaginário e simbólico cultural, de modo mais amplo queo usual em uma sociedade. Além disso, estamos assistindo cada vez mais, nas sociedadesmodernas, ao fato de indivíduos recorrerem a práticas até então específicas de sociedadestradicionais, o que faz a fortuna de curandeiros de todo tipo. Assim, quanto mais frágeisforem os sistemas simbólicos, quanto mais tênues forem os laços da rede social, mais osindivíduos buscarão se agarrar a representações fortes e cativantes que lhes poupem qual-quer esforço pessoal de reflexão sobre eles mesmos. As receitas cheias de imagens fortesimpressionam muito mais o espírito do que as prescrições abstratas. Até o corpo as segue. À pretensão universal da psicanálise responde a globalização efetiva da magia.
Mas qual é a diferença entre esses processos? Não estou falando em comparar os
pontos de referência que sustentam dois tipos de práticas, evidentemente tão estranhosum ao outro, tais como a ciência e a religião, a razão e a fé. Falo das vias através das quaisse procura alívio para o sofrimento.
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
Se considerarmos a diversidade das curas, discerniremos características comuns
que contribuem para a sua eficácia. Algumas são mais presentes e encontradas em pro-porções variáveis, conforme as práticas, mas, à medida que as examinamos, podemoscompreender melhor o mecanismo que as torna eficientes. Isso se considerarmos que “acura” pode ser ilusória, frente a um olhar objetivo, mas que é preciso reconhecê-la, na me-dida em que o sujeito a vive como tal, e sem levar em consideração sua duração.
O que é curar? O dicionário Petit Robertatesta: livrar de um mal físico, de um mal moral, consolar. Sabemos que os psicanalistas recusam essa definição: eles não livram domal. Ou então: é Deus Pai que deve fazê-lo para atender, caso queira, às preces dos fiéis. Eles, os psicanalistas, sabem que o mal está entranhado para sempre no fundo do in-consciente e no destino humano, o máximo que se pode fazer é adaptar-se a ele e encará-lo. Essa posição assemelha-se à do incrédulo, do sapiens sapiens, da razão crítica. Mas vol-temo-nos para a compaixão e a piedade (cristã) que se comovem com a miséria e não po-dem desprezar as súplicas dos humanos sujeitos ao sofrimento, vítimas oscilantes das ma-nobras políticas e econômicas, de um destino cruel, e que nunca têm acesso às escolas darazão. Eles não têm recursos nem meios de se elevar até às delícias torturantes do pen-samento reflexivo. Eles não falam, eles gemem, não porque não saberiam falar, mas por-que a eles não foi dada essa permissão.
Além da psicanálise ou da filosofia, é a política que autoriza a atividade do pensa-
mento. Foram os homens que se proibiram a si mesmos, ou que proibiram a outros deserem humanos até o fim.
Antes de privilegiar o procedimento nobre, fundado no rigor de uma exigência cen-
trada no manejo da linguagem, é preciso satisfazer as necessidades elementares e esperarpelo tempo da escola, da aprendizagem. Se somente o homem tem esse potencial, o pen-samento se aprende, nós não saímos completamente armados das entranhas de nossos pais.
Então, não seria preciso escutar a queixa e a demanda daqueles que sofrem – e quem
entre nós não se encontrou, em algum momento, em um estado tal de desespero im-possível de evitar ou do qual era impossível se distanciar? A compaixão pode então atendera esse pedido de consolação e de alívio do sofrimento. O rodeio feito através de imagensfortes que geram esperança e credulidade, mesmo recorrendo à ilusão, não deixa de serum curativo provisório e às vezes suficiente que não se poderia recusar, ainda que in-criminem aqueles que dele abusam para obter benefício material e narcísico. Não se trataaqui, de maneira alguma, de tomar essas manipulações como ciência, embora valha a penapenetrar suas entranhas, o que não deixa de constituir um procedimento científico. Nãose trata, por exemplo, de fazer apologia da astrologia a qualquer custo, mas de explicar oque acontece com os clientes do astrólogo, e isso não prejulga em nada a ação a longa dis-tância da geometria dos astros!
Um sujeito que sofre, à espera de socorro, supõe o especialista/iniciado, detentor das
técnicas/procedimentos supostamente aptos a fazer desaparecer seus tormentos, elucidandoatravés do saber rotulado/poder reputado, os fatores de seu aparecimento, e aptos tambéma modificar seus dados ou condições. É preciso que o paciente dê um salto de um estado
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
Certeza, crença, ilusão as práticas da ilusão
a outro, o que significa uma reviravolta mental equivalente, por exemplo, à conversão. Ele passa e quer passar de um estado de sofrimento contínuo e insuportável a um estadode apaziguamento. Isso seria, ao mesmo tempo, um retorno ao que era antes e uma pro-jeção no futuro.
Ele espera que essa reversão de situação venha em forma de estremecimento, de
choque, ele até acredita ser este o fator necessário para obter tal reversão (idéia que aliásserviu de álibi científico, no emprego das técnicas de choque em psiquiatria). Essas téc-nicas de choque são encontradas em todas as práticas médicas, como rituais de acolhimen-to dos doentes. Todas elas recorrem a um dispositivo em que o sujeito se vê ao mesmotempo privado de suas referências e modos de comunicação habituais, através do iso-lamento, da prática de certas posturas, do silêncio ou da limitação da expressão a um únicoregistro (oração, canto, associações livres, recitação.).
O corpo é submetido a limitações que reduzem sua autonomia e favorecem a su-
gestionabilidade (balanços, ritmos em cadência, imobilidade.). Isso pode ainda ser am-plificado por uma excitação ou desestabilização neurofisiológica, por ingestão ou inalaçãode substâncias tóxicas, pelo jejum, pela vertigem suscitada por danças em circunvolução,martelamento de sons, alternâncias de obscuridade e luz intensa, focalização de pontos lu-minosos, efeitos “estromboscópicos”.
Quase sempre o paciente se submete à autoridade de um mestre investido de poder
pela comunidade, seja esse poder oficializado ou oculto. Ele se encontra em posição dedependência infantil, pronto para acolher e reproduzir a vontade falada ou “agida” dessaautoridade. A situação gera um estado emocional forte, os afetos são drenados e con-densados na figura daquele que “cura” e é percebido como um iniciado, um salvador, co-nectado com as energias obscuras que se manifestam nessas condições e que aparecem co-mo as causas irredutíveis dos problemas. Esperança, liberação emocional, regressão, foca-lização sobre um personagem central: na situação psicanalítica, isso pode ser chamado detransferência.
Todas as práticas oferecem, e isso pode parecer essencial, um roteiro articulado com
um sistema de representação imaginário e simbólico. Roteiro: é o que acontece no palcoterapêutico, distribuição e colocação de personagens reais ou fictícios, invocados, en-carnados ou representados (Édipo, Orixás, Virgem Santa.); sistema de representação:são as referências míticas, teóricas ou ideológicas que servem de trama para as condutasem uma cultura. Ao mesmo tempo que são imaginárias, são figuras de identificação e deprojeção possíveis; e simbólicas, naquilo que seus agenciamentos codificam as trocas quese estruturam segundo o seu modelo.
É sua maior ou menor abstração ou figuração, bem como seus mistérios, sua jus-
tificação racional, que fazem com que sejam reconhecidas como mito, doutrina, teoria ouideologia. Mas será que sua função é diferente? Evidentemente, em toda prática há objetosinvestidos que parecem condensar, tanto quanto o mestre, as energias convocadas (con-chas, velas, recipientes com água, bolas, sementes, divã, poltrona.), eles podem variarinfinitamente, o essencial é que sejam sacralizados, isto é, que sejam atributos do mestre
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
e reservados à sua exclusiva disposição, por isso aparecem como instrumentos das ener-gias inconscientes/ocultas, símbolos materiais do acesso à cura.
Inútil dizer que o paciente chega à sessão ou ao ritual de cura em um estado emo-
cional intenso, cheio de esperança, de temor e de respeito, mistura de sentimentos que opreparam, seja ele crédulo ou não, para o choque, primeiro sinal e condição para uma mu-dança. Ele está pronto para a passagem, suas emoções foram convocadas, seus afetos mo-bilizados, seu corpo se abandona, o discurso ou o jogo se inserem em sua trama. Libertodas preocupações do cotidiano, da realidade ordinária, ele se desloca fortemente no ritualda cura, passando por uma espécie de iluminação. Dessa vez, a iluminação é provocada,enquanto que na conversa ela pode ser espontânea.
Há ainda um outro fator que contribui para essa assunção: a cumplicidade do gru-
po. Evidentemente, alguém pode se submeter sozinho a um processo de cura. A título pes-soal, isso é um sinal moderno, ocidental, da importância dada ao sujeito self made, mas,nas culturas pouco ocidentalizadas e que se referem a práticas tradicionais, a preferênciavai para as práticas comunitárias, digamos grupais. O paciente é cercado, sustentado,exortado por seu grupo que vibra com os mesmos ritmos, se insere nos mesmos roteiros,canta, reza, dança com o doente. Esse último não só fica curado, mas “renasce” para o gru-po que o assiste e no qual ele é reinserido.
Se encontramos os mesmos traços em todos os processos de cura ou terapêuticos,
o que há a concluir? Talvez seja preciso suspender o julgamento acerca da validade cien-tífica das explicações e dos procedimentos (como: “a borra de café é mesmo capaz de fazerum diagnóstico?”), para estudar os processos que realmente dizem algo sobre os meca-nismos do sofrimento e da cura e que podem, por sua vez, resultar na concepção refletidae controlada de dispositivos eficientes, a longo termo. É preciso ter em mente que o corpo,o grupo, a relação, o imaginário e o simbólico são aí convocados tanto quanto o psi-quismo, o que parece coerente com a concepção de um sujeito complexo que não podeser concebido fora de sua atualidade cultural e social, nem distanciado de seu corpo.
Vamos insistir aqui sobre a virtude da metáfora: as representações fortes, sejam elas
súbitas ou culturalmente sobrecarregadas, são capazes de mobilizar o imaginário e de ex-citar as emoções – estas estão na conjunção do psicológico e do psíquico. Assim, o mo-vimento emocional e a adesão imaginária solidárias levam à mudança. Mas ainda é precisoque a metáfora proposta seja formulada com conhecimento de causa. E é aí que o olharcientífico prima sobre a intuição inspirada ou interessada. O problema não é acreditar ounão acreditar, mas pensar o fenômeno da crença, seus suportes, suas modalidades, seusefeitos. Afinal, não somos todos crédulos? A grande questão é ter consciência disso. É o quepode evitar que nos tornemos integristas de nossas referências teóricas, por mais científicasque elas nos pareçam, sob o risco de fazer delas artigos de fé que não mais toleram a crítica.
Longe de nós a idéia de pregar um retorno ou um recurso à magia. A exigência de rigor científico é extremamente recomendada a quem se ocupa da
cura, o estudo e a pesquisa que consolidam o conhecimento das causas e dos efeitos deveminstruir sua prática de maneira inteligente. Já os pacientes dão prioridade aos benefícios
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
Certeza, crença, ilusão as práticas da ilusão
esperados, pois quanto ao resto, eles se baseiam essencialmente na confiança, e vale lem-brar que a fé não lhes é estranha.
É verdade que muitos de nós procuram práticas nas quais prevalece uma teoria ba-
seada na experiência e na crítica, e renunciam às firulas do irracional. É também precisoreconhecer que isso demanda uma postura intelectual previamente construída, uma forçade caráter suficiente para dar conta da elaboração de algum sentido, para mergulhar emseus próprios abismos e correr o risco lúcido de forçar suas próprias defesas e as dos outros,sem garantia de cura. Isso é, muitas vezes, o efeito de uma exigência interior, embora sejatão difícil quanto a posição daquele que recusa a crença. Isso é, sem dúvida, nobre, masnem todo mundo é Sísifo. Às vezes nos contentamos em ser um homo erectus ou sim-plesmente homo sapiens, já que o homo sapiens sapiens é mais árido. Então fazemos um votode confiança nos outros, delegando nosso pensamento crítico. Pelo menos, não corremoso risco de sermos destronados pelos chimpanzés. Afinal de contas, não estamos no Planetados macacos.
Nous ne percevons le monde qu’à travers les représentations que nous pou- vons nous en donner. Si la science révise sans cesse ses hypothèses, les mythes et les religions plaquent leurs vérités sur la réalité énigmatique, fournissent des recettes au prix de la soumission. La pensée rationnelle, au prix d’une re- élaboration constante se targue de la lucidité et d’un accès à la liberté, si elle vise des certitudes c’est par le recours à l’intelligence critique; la pensée re- ligieuse par l’adhésion émotionnelle. Dans la perspective thérapeutique la deuxième a des effets certains pour les sujets en souffrance, dont il est inté- ressant plutôt que d’en rejeter les arguments, de retracer les processus. On s’aperçoit que ceux-ci passent par des étapes très comparables, que le référen- tiel des cures soit scientifique, religieux ou magique. Mots clefs:Croyance; Pensée rationnelle; Thérapie; Processus de guérison. Referências bibliográficas DESCARTES (1637). O discurso do método. [s.n.t.]. KANT (1781). Crítica da razão pura. [s.n.t.]. PASCAL (1657). Pensamentos. [s.n.t.]. TERESA DE ÁVILA (1565). Vida de Santa Teresa de Jesus. [s.n.t.]. BARUS-MICHEL, J. Souffrance, trajets, recours. Dimensions psychosociales de la souffrance humaine.Bulletin de Psychologie n. 452, mars-avril, 2001. BASTIDE, R. Le rêve, la transe et la folie. Paris: Flammarion, 1972. BENOIST, J. (Org.). Soigner au pluriel. Paris: Médecines du monde, Karthala, 1996. DURKHEIM, E. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF, 1968. Fórum Diderot. Qu’est-ce qui guérit dans la psychothérapie? Paris: PUF, 2001. FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. In: _____. Da técnica psicanalítica. Paris: PUF, 1953. LÉVI-STRAUSS, C. A antropologia estrutural. Paris: Plon, 1958. NATHAN, T. L’influence qui guérit. Paris: Odile Jacob, 1994.
Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 72-81, jun. 2002
“II Taller Iberoamericano de Indicadores de Trayectorias de Recursos Humanos en Ciencia y Tecnología en Iberoamérica: Hacia el Manual de Buenos Aires” PROGRAMA Día 1 – Lunes 9 de noviembre I Jornada de intercambio entre expertos invitados, grupo de trabajo y equipo técnico del Manual 9.30 a 10 hs - Apertura del II Taller • Dr. Francisco Manuel
In any form of portfolio analysis, it is appropriate to regard some inputs as stochastic and others as deterministic. In areas where key inputs are uncertain, it may be more suitable to map such inputs to a distribution than to “guess” an average result. This however increases the modelling complexity in terms of the sampling precedence that will occur in the simulation process, and increa