O ABORTO E SEUS SIGNIFICADOS DE RESISTÊNCIA Gilberta Santos Soares1
Há muito venho pensando sobre como a decisão de uma mulher de interromper uma
gravidez não planejada pode conter um profundo sentido de resistência das mulheres às imposições
sociais que regem comportamentos, práticas sexuais e desejos impostos a partir dos códigos
dominantes nas relações de gênero. O contexto posto é o da maternidade obrigatória como forma da
conformação da categoria mulher, que associa feminilidade à maternidade, realçando os atributos de
docilidade, abnegação, submissão associados a uma suposta natureza feminina e ao “instinto
materno”, baseados na disposição orgânica para gerar filhos. Rosado (2006) refletindo sobre o
tratamento social sobre a maternidade, aponta que não é comum perguntar a uma mulher porque ela
engravidou e os motivos para colocar no mundo mais um ser humano, enquanto as razões para
abortar seja a pergunta para uma mulher que cogita o aborto. “Porque a biologia no-lo permite,
‘somos’ mães” (ROSADO, 2006, p. 31).
O suposto da inferioridade respalda a idéia da falta de capacidade das mulheres de tomarem
decisões eticamente responsáveis; a abnegação respalda a imposição da sobrecarga de trabalho, do
sofrimento mental, da violação de direitos das mulheres.
Parte das reflexões e os depoimentos de entrevistadas que apresento neste artigo foram
trabalhados na dissertação de mestrado: Significados Simbólicos do abortamento: A intimidade
compartilhada (SOARES, 1998). A pesquisa foi realizada com mulheres, que tinham vivenciado a
experiência do abortamento, com um delimitado perfil sócio econômico e cultural da cidade de João
Pessoa, através de grupos focais. Eram mulheres jovens e adultas, entre 22 e 47 anos, estudantes,
profissionais, militantes de sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos, com e sem filhos,
com acesso a informação e cultura, como jornal, cinema, teatro e internet. Moravam sozinhas ou
acompanhadas, saíram da casa dos pais, namoraram, casaram, buscaram um parceiro,
experimentaram relações, desafiaram modelos dominantes no seu meio.
Parti para o campo com duas perguntas norteadoras: seria o abortamento, conseqüência de
1 Feminista, psicóloga social, doutoranda do Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero, Feminismo do NEIM/UFBA; Secretária Executiva da Secretaria Estadual da Mulher e da Diversidade Humana da Paraíba e colaboradora da Cunhã Coletivo Feminista.
uma gravidez indesejada, resultante do conflito entre a maternidade como obrigatória e definidora
da representação do ser mulher e o surgimento de novas oportunidades e de outras representações?
Seria a obrigatoriedade da maternidade a configuração da lei social, enquanto o abortamento seria a
quebra real e simbólica da fixação do lugar das mulheres no sistema de gênero sendo, por isso,
localizado na esfera do proibido, do crime e do pecado?
O debate sobre o aborto tem sido carregado de valores morais e religiosos que culpabilizam
as mulheres, inserido na polarização do ser contra ou a favor, impedindo o alargamento da visão
sobre o tema. A regulamentação do aborto pelos diversos poderes: igreja, Estado, ciência,
sobrecarregou a vivência de rótulos, estigmas e punições, produzindo e impondo uma ética
universal, antagônica à realidade das mulheres. A moral cristã enfatiza a concepção do aborto como
um pecado, uma forma de “tirar a vida”, de modo generalizado, como visão dominante na
sociedade. Esta ética universalizante e abstrata nega a vida das mulheres, a autonomia, o corpo e os
problemas de gênero vivenciados pelas mulheres nas relações com os parceiros das gravidezes.
Ao contrário, o esforço de pensar uma ética das mulheres ou ética feminista baseou-se na
vida cotidiana, tendo como desafio conhecer a realidade e escutar as experiências de onde se retira
as respostas para a formulação ética (Gebara, apud OLIVEIRA & CARNEIRO, 1995). Em histórias
de vida de mulheres que se declaram contra o aborto, não é raro encontrar aquelas que “perderam” e
mantêm segredo. No senso comum, quando se diz que a mulher “perdeu”, significa que tomou
Lembrando a ética do cuidado, Tânia Kuhnen (2010), em diálogo com Carol Gilligan,
relaciona a ética do cuidado com a experiência feminina de responsabilidade nas relações:
“enquanto a voz masculina direciona-se para o desenvolvimento de propostas éticas pautadas em
princípios imparciais e direitos, a voz feminina aponta para um modo diverso de falar sobre
problemas morais, baseado na experiência feminina dos relacionamentos de cuidado” (2010, p.
156). Para pensar o tema do aborto, é interessante trazer a experiência de parteiras tradicionais –
indígenas, quilombolas e mulheres do campo – que vivenciam uma ética diferente de médicas/os.
Sabe-se que grande parte das parteiras conhece e cultiva ervas abortivas para o preparo de
chás. Todavia, há um silencio, evitam a palavra aborto, usando expressões como: “parto de aborto”,
“descer a regra”, “perder” para significar a vivência do aborto das mulheres que elas acompanham
em suas comunidades. Nas palavras de Paula Viana2:
2 Entrevista concedida em junho de 2011 sobre trabalho com parteiras tradicionais do Grupo Curumim.
Apesar de afirmarem que nunca oferecem chás às mulheres e que preferem cuidar de dez complicações de um parto a termo, do que ter que lidar com um aborto, quando uma mulher em processo de abortamento pede ajuda, as parteiras não negam, pois sabem que a mulher está precisando do cuidado dela. Para a parteira, o cuidado está acima de tudo e ela não pode dispensar o dom de cuidar em nome de qualquer julgamento (2011).
Do ponto de vista da ética das mulheres que abortam, o abortamento é uma experiência que
envolve uma decisão individual ou de dois, que na grande maioria das vezes está nas mãos da
mulher. Falar de aborto é falar de algo extremamente íntimo, pessoal e subjetivo, “Afirmamos que el aborto se inscribe en una compleja trama de factores personales, biológicos e socioculturales que lo hacen un evento único, distinto para cada mujer, portanto no generalizable” (Cardich, 1993, p.
A decisão pela interrupção voluntária da gravidez muitas vezes é complexa para as
mulheres, pois exige uma decisão urgente, que transita entre o exercício da autonomia, dos direitos
e das proibições. Além de proibições legais e interdições religiosas, há a opinião pública e as
posições de familiares, de amigas (os). Entre as entrevistadas na pesquisa, abortar, frequentemente,
significou um conflito imediato frente às condições de clandestinidade e a complexidade ética da
decisão de abortar, entrando em confronto valores, necessidades e desejos. Isto torna o aborto um
evento marcante da vida reprodutiva e sexual das mulheres e casais. Ardaillon (1997, p. 379),
dialogando com Petchesky, argumentou que “a decisão de abortar é sempre a resultante de negociações entre ideologia, realidade social e desejo, o que Petchevsky denomina moralidade da situação”.
Mesmo quando o aborto se colocou em oposição aos valores da mulher, sendo por isso
considerado uma agressão e um mal, pôde-se recorrer a ele. A emergência da situação levou a uma
decisão que considerou o conjunto de fatores e o aborto se constituiu, então, como uma solução.
Neste sentido, proporcionou o sentimento de alívio. Esta relação estabelecida entre os valores e o
comportamento foi também denominada por Ardaillon (1997, p. 378) de “moral da práxis”. Ou
seja, o inusitado da gravidez (in)desejada proporcionou rever valores e agir de acordo com uma
A expressão da autonomia das mulheres na vivência do abortamento
Para as mulheres, as representações do abortamento também se enraízam nas relações de
gênero e no processo de construção da representação das mulheres sobre elas mesmas, sobretudo a
partir da ênfase social na reprodução e na maternidade como atributos naturais, e do rompimento
Neste sentido, o surgimento da gravidez (in)desejada3, que tem como desfecho o
abortamento, insere-se nos conflitos resultantes do processo de transformação do sistema
sexo/gênero e no modo como as mulheres traduzem, subvertem ou se submetem às exigências
culturais em torno do ser mulher. O engravidamento não se constitui exclusivamente como um
fenômeno biológico da existência, mas também é gerado nos recônditos do desejo de ser mãe, de
constituir uma família, de comprovar o potencial reprodutivo e, em última instância, de confirmação
da feminilidade. Longe de se constituir como um fato natural na vida das mulheres, o desejo e o
não-desejo de ser mãe são produzidos a partir de determinantes culturais.
Assim sendo, a importância atribuída à maternidade pela nossa sociedade na vida das
mulheres torna-se um fator determinante na produção do desejo de ser mãe, o que não impede a
ausência deste, ou mesmo a dúvida em relação à maternidade. Faz-se necessário lembrar que, como
aspectos da produção do desejo de ser mãe, conta-se com a concretude da disponibilidade biológica
para a reprodução do corpo da mulher, a importância da figura da mãe em todas as culturas através
dos tempos, a perpetuação da espécie como algo característico da espécie humana, a necessidade de
perpetuar povos ameaçados de extinção, como os povos indígenas, e a contraposição a política de
esterilização em massa de mulheres negras em contextos de pobreza.
Supõe-se que os motivos da gravidez (in)desejada não estão relacionados apenas a aspectos
objetivos, como a falta de condições concretas de regular a própria fertilidade, ou seja, acesso a
informações, conhecimento do corpo, acesso aos métodos contraceptivos, domínio do uso dos
métodos e possibilidade de ajuda profissional, condições que fazem pensar sobre a existência do
controle dos processos orgânicos e da garantia das condições básicas de sobrevivência. Também
estão relacionados a questões inscritas na esfera da subjetividade, dos afetos, a respeito dos desejos
e da auto-afirmação das mulheres, como constatam Prado e Zanetti:
3 A denominação gravidez (in)desejada refere-se à produção do desejo, seus conflitos e ambigüidades, considerando os fatores subjetivos em acréscimos aos de ordem objetiva que ocasionam a gravidez. É aquela que se produziu em condições nas quais há sentimento de dubiedade do desejo de ser mãe. Situa-se num contexto cultural onde a conotação naturalizante-biologicista dos sexos destina à reprodução o lugar primordial da afirmação do feminino. Tomamos este fator simbólico em ação como fundamental na constituição do desejo de ser mãe
muitas vezes, na minha prática, acompanhei mulheres que estavam dando um salto em direção a sua autonomia, em projetos de trabalho que começavam a preencher um espaço social e aí aparecia uma gravidez indesejada (Zanetti, 1991, p. 6).
A experiência do abortamento pôde ser vivida com sofrimento, dor, dúvidas ou com alívio e
determinação. Foi comum que os sentimentos se misturassem nas falas, mostrando sua pluralidade e
a polifonia à qual o discurso da subjetividade está subordinado.
Os abortos aconteceram em vários momentos da minha vida, então cada um tem uma história. O primeiro aborto que eu fiz foi pra dar fim a algo indesejado, sei lá um momento de irresponsabilidade minha talvez, mas eu senti um alívio. Já o segundo foi uma coisa muito sofrida que era uma coisa que eu queria mesmo, na conjuntura não era possível (S. 31 anos).
Na pesquisa realizada, foi possível perceber nos depoimentos duas linhas de pensamento
como partes desse diálogo social que se instala em cada mulher. O lado mais conservador, arraigado
na construção histórica do gênero, que definiu padrões de comportamento estáticos, socialmente
aceitos por mulheres e homens. Na outra perspectiva, estavam as posturas de transgressão e de
mudança de comportamento nas relações de gênero e as re-significações que têm atualizado as
representações do ser mulher e do ser homem.
Não resta dúvida que houve mudanças históricas que repercutiram diretamente na vivência
sexual e reprodutiva das mulheres brasileiras, favorecendo a autodeterminação às filhas em relação
às suas mães. O surgimento da pílula contraceptiva nos anos 60 possibilitou desvincular o sexo e o
prazer da reprodução, imprimindo uma nova relação com a procriação, tornando possível controlar
a fertilidade e, ter mais liberdade de se relacionar sexualmente, sem engravidar. A movimentação
sócio-política-cultural dos anos 60 - liberação sexual, movimento hippie, comunismo, feminismo -
repercutiu ao longo dos anos em mudança de mentalidade, forçando um afrouxamento das pressões
sociais sobre a mulher. As mudanças nas relações de gênero, na inserção social e no mundo do
trabalho exerceram influência sobre o desejo das mulheres de ter e não ter filhos, assim como a
quantidade e quando tê-los, concorrendo para a diminuição do número de filhos por mulher.
De fato, as mentalidades que nortearam as posturas das mulheres pesquisadas estavam
mescladas de traços conservadores e transgressores, fazendo com que houvesse uma mistura típica
aos processos de transição, no marco da constituição de novas identidades e novas legalidades.
De certa forma lhe dá um certo prazer a gravidez porque você descobre que é fértil. Aí você sente aquela coisa meio feminina, meio cultural como se a mulher só é mulher se for mãe. Aquela coisa que você cresce ouvindo. Aí o abortamento pra
mim foi essa coisa de botar pra fora algo; botei pra fora também e acabei externando um sentimento. . Não eram questões financeiras que me impediam de ter, o que pesava era o meu momento, os meus objetivos de vida. Aquilo ia mudar todo o meu percurso, eu ia ter que renunciar uma série de coisas que eu tava querendo (C. 32 anos) .
A fala acima expressa a mescla entre valores tradicionais presentes no sistema sexo/gênero
que se emparelharam com noções de autonomia, direito e transgressão, mostrando uma imbricação
nas representações sobre o aborto. Pode-se dizer que a situação foi percebida de vários pontos de
vista, às vezes aparentemente contraditórios, paradoxais e complementares.
Entre as mulheres, principalmente as com filhos, justificativas como “adorar ser mãe”, “é ou vai ser uma boa mãe”, ou “que adora os filhos”4, vieram a priori nos relatos sobre o aborto,
como uma necessidade de afirmar-se, antes de tudo, como mãe. Como se o ato de abortar pudesse
significar a supressão do desejo de ser mãe ou a incompetência para exercer tal função. A
preocupação com essa afirmação foi expressa também no seguinte depoimento: “acho que o aborto não significa que você não deseje ser mãe”.Por outro lado, traduziu uma visão dinâmica
do aborto, como algo que se inseriu na trajetória individual, relacionado a determinado momento e
projeto de vida, o que não representava uma decisão definitiva quanto à maternidade.
Não foi à toa que a divisão e a ambiguidade estavam presentes nas falas sobre a vivência do
abortamento e da própria situação de engravidamento (in)desejado. Sentimentos de indefinição,
dúvida, contradição retrataram a ambiguidade que muitas vezes envolveu o processo de ser e/ou não
ser mãe e traduziu a subjetividade que acompanhou o antes, o durante e o depois do abortamento.
Isso gera uma divisão, uma confusão na gente, é uma loucura! . como é que a gente chamaria essa doidice dessa hora? porque dá uma loucura: quer! não quer! é uma divisão e você sair inteira de um negócio desse, acho que fortalece a gente ( V. 37 anos)
A definição de aborto, encontrada entre as mulheres, mais destituída de valoração, foi a que
o traduziu como “interrupção de uma gravidez”. Porém essa definição, asséptica de subjetividade,
não lhes foi suficiente e as mulheres se estenderam a outros significados e ao aprofundamento do
que seja interromper. Interromper estava associado à idéia de corte.
Interromper a gravidez, cortar. A significação de cortar, por sua vez, é muito ampla e deu
sentido à vivência de abortar: “separar, suprimir, perder, eliminar, atravessar, cavar, aparar, divisão”,
foram expressões também usadas pelas mulheres ao longo dos discursos. O discurso anterior
referiu-se a “botar pra fora”, eliminar algo mais que o aborto5. Talvez botar pra fora os modelos
tradicionais de comportamento, provocar rupturas, expelir um paradigma conservador de vida.
Botar pra fora um sentimento, extrair o desejo de maternidade aprendido na infância e, naquele
momento, optar por outro projeto de vida, mesmo que aquela gravidez tenha lhe sido útil para
confirmar seu potencial reprodutivo, sua fertilidade.
Se se engravidou de diferentes modelos culturais e em contextos culturais diferenciados,
abortar pode ser uma resposta de subversão, uma rejeição, frente a imposição dos modelos sociais.
Esta representação expressa o deslocamento para outros significados, para um lugar de ruptura,
capaz de desconstruir referenciais de comportamentos da mulher em nossa sociedade,
especialmente os relacionados com a vida reprodutiva. Esse deslocamento se dá quando o
paradigma da maternidade obrigatória é desconstruído, provocando cortes no processo social de
O desejo seria de maternidade, seria cortar. cortar mesmo, impedir que aquela coisa que não é filho ainda venha a se tornar um. Promover um corte, uma ruptura, interromper um percurso significa também mudar de rumo, de perspectiva (A. 26 anos).
Como se o (in)desejo6 da gravidez oportunizasse se colocar em questão como mulher: Que
mulher eu quero ser? Que caminho quero seguir? Nesta perspectiva, o aborto ocupou um lugar de
busca, de desconstrução do feminino tradicional, de quebra da circularidade da reprodução
obrigatória passada da avó para mãe, para filha.
Eu acho que uma mulher que faz aborto tem que ter um bocadinho de audácia, porque o normal é você aguentar, ter o filho, passar pelo diabo, mas aguentar ali. Eu acho que é uma fortaleza mesmo, a gente descobre uma fortaleza na gente porque você tá indo contra tudo, a idéia de Deus que você aprendeu, a natureza (E. 37 anos).
O aborto desafiou a obrigatoriedade biológica da reprodução e da maternidade como um
instinto e se inseriu no âmbito da definição de um projeto de vida. Foi a marca da audácia, da
coragem e da rebeldia. Abortar foi para muitas mulheres sinônimo de autonomia e
autodeterminação baseada, inclusive, no senso de responsabilidade e cuidado consigo e com os que
5 Na linguagem científica, aborto é o produto da cavidade uterina expelido no momento do abortamento. A conotação popular designa o ato em si de aborto. 6 (In)Desejo no sentido de (in)desejada descrita anteriormente.
Eu acho que a gente tomar a decisão numa hora dessa que não é uma hora fácil, eu acho que isso diz respeito a autonomia, como se eu tivesse adquirido mais autonomia sobre mim mesma, sobre meu corpo (V. 37 anos).
Para algumas mulheres, a interrupção assumiu a conotação de “uma menstruação que veio”, os procedimentos adotados foram encarados como mecanismos de regulação da
Aos 24, eu já achava que sabia alguma coisa e eu interrompi essa gravidez porque eu quis, pra mim foi só uma menstruação que veio. Eu não tive sentimento de perda (Z. 34 anos) .
Nesta mesma perspectiva, afirmou uma entrevistada: “Quem aborta não chega nem chega engravidar” (V. 37 anos). Essa forma de abortar foi citada pelas entrevistadas como comum às
suas mães e avós. Nestas situações, não se vivenciou o sentimento de perda, não se estava perdendo
nada, desde que a menstruação é um processo natural, um ciclo de renovação que se espera a cada
mês. A sensação de“menstruação que veio” também pode sofrer influência da relação entre idade
gestacional e época de realização do aborto. Quanto mais cedo a interrupção aconteceu, menos
tempo se teve para sentir as transformações corporais, investir afetos e representar a gravidez e
A representação da “menstruação que veio” está presente também entre mulheres
indígenas, quilombolas, trabalhadoras rurais que na sua grande maioria utilizam métodos de
interrupção naturais, como chás e beberagens, sem procedimentos invasivos, sem a presença do
poder médico, no contexto do uso dos diversos mecanismos de controle da fertilidade, passados de
geração em geração, pela tradição oral.
Sou de uma família muito pobre. Minha avó, Margarida Maria de Jesus, era africana e parteira. Ela me ensinou tudo o que sei sobre ervas medicinais. . Os banhos que ela me ensinava, os chás! Ela dizia que as mulheres têm que ser limpas, para não ter filho toda hora. Ela recomendava uma lavagem com ervas no final de cada regra. Outras pessoa usavam vinagre, mas ela achava que vinagre não era bom. Eu sempre fazia como ela dizia, tanto que meus filhos são bem espaçados um do outro. .Minha avó viveu até os 98 anos. Ela era lúcida, perfeitinha, bonitinha. Era uma belezura de velhinha. .Ela não gostava de ir ao medico. Fazia seus próprios remédios. (2000; p. 219).
O sentimento de independência e a coragem estavam associados à decisão do aborto. As
mulheres entrevistadas, ao refletirem a respeito das consequências do abortamento nas suas vidas,
assinalaram a experiência do amadurecimento e crescimento pessoal que veio junto com o processo
de decisão. O amadurecimento foi descrito como o aumento da responsabilidade consigo mesma, da
prevenção da gravidez, da necessidade de conhecimento e cuidado com o corpo, da exigência na
relação e de uma flexibilização dos valores.
O aborto proporcionou me enxergar mais na minha totalidade de mulher. O que significa realmente você nesse processo de não ter um filho, nesse processo de entrar no mercado de trabalho aonde o homem sempre tem prioridade. Realmente, a gente vivencia essa questão da solidão muito de perto, dentro da gente mesmo. e você começa enxergar a sua individualidade enquanto mulher” ( J. 23 anos).
A vivência da solidão foi comum entre as mulheres que fizeram aborto, as quais, nas mais
diversas situações, sentiram-se sozinhas, mesmo quando estavam acompanhadas do companheiro,
amigas ou amigos. A solidão apareceu como um processo que tem dois aspectos: o mergulho em si
mesma e o contato com as próprias fragilidades, e o desamparo que sentiram frente a
impossibilidade de dividir a experiência. Não poder compartilhar a experiência, vivendo-a no
silêncio e na clandestinidade, significou estar só. Só, por ser uma experiência intransferível, na qual
não se pode passar o corpo para que outra/outro aborte; só, por fugirem as palavras que pudessem
transmitir a complexidade do que se vive, e só na tomada de uma decisão extremamente individual.
O processo não tem dor física grande, mas era uma dor de tensão mesmo, era como se tudo tivesse suspenso, a minha vida toda estava suspensa, tudo. Eu tinha que resolver aquilo rápido. (A. 26 anos). Quando a gente passa por uma experiência de aborto, doloroso do jeito que é, seja pelos aspectos culturais, econômicos, tudo que vem na cabeça da gente, a gente não quer viver aquilo de novo ( J. 23 anos) .
O depoimento acima foi na contramão das afirmações do senso comum de que as mulheres
gostam de abortar e que a legalização concorreria para aumentar o índice de abortamento, como se
as mulheres buscassem a interrupção indiscriminada e corriqueiramente. O lugar que a experiência
ocupou na vida de uma mulher pode ser sentida na expressão “a minha vida toda estava suspensa”(A. 26 anos), ou seja, nada fazia sentido antes que tudo estivesse resolvido, nada
ocupava mais a existência do que aquela gravidez e a urgência da interrupção. A vida ficou
suspensa porque o que ocupou o espaço simbólico-afetivo foi algo de grande dimensão e, por tudo
Uma teia de cumplicidade
A presença de amigas, irmãs, vizinhas, colegas, mães, foi marcante na vivência do
abortamento, sobretudo pela participação no processo de decisão e interrupção. Essas outras
mulheres se envolveram de diversas formas; criando condições concretas para resolução do
problema - contatos, endereços, agendamento, empréstimo do dinheiro - apoiando emocionalmente,
acompanhando, segurando a mão, cuidando, dando colo, conversando. Foram cúmplices: aquela
que é cúmplice guarda segredo, apóia, respalda, arrisca-se mediante a transgressão do aborto. Neste
sentido, as mulheres formaram redes de apoio e solidariedade.
Além da presença do homem, pai, irmão, amigo ou parceiro, ser rara, as mulheres se
sentiram mais seguras quando foram acompanhadas por outras mulheres. Por isso, muitas vezes,
uma mulher que não fez aborto já vivenciou a experiência através de outra.
O primeiro contato que eu tive com aborto foi com uma amiga minha . Quando aconteceu comigo, não foi uma coisa assim . Aí eu acho que não mudou muito porque é como se eu já tivesse feito, tá? Através de uma amiga minha, que eu gosto muito, e que de certa forma a gente vivencia com as pessoas” (M. 36 anos) .
A solidariedade entre as mulheres, no aspecto da vivência reprodutiva, foi um componente
tão presente, que, muitas vezes, a mulher, mesmo sendo ética e moralmente desfavorável ao
abortamento, respeitou a decisão da outra e ajudou-a. Sendo este um momento que oportunizou
rever valores. Porém, entre as mulheres de uma mesma família, o assunto aborto por vezes
permaneceu velado. Existiu dificuldade de se falar sobre os abortos das mulheres da família.
Algumas vezes, as interrupções voluntárias da gravidez foram escamoteadas no aborto espontâneo,
aquele que aconteceu involuntariamente: “se elas fizeram até eu não sei porque elas dizem que foi espontâneo” (I. 31 anos).
Eu sinto que na família dela, mesmo aquele pessoal mais antigo, tinha conhecimento. Não o que a gente tem hoje, do Cytotec, de método de sucção, mas tinha chá de quebra-pedra, elas tinham ( R. 30 anos) .
Mesmo assim algumas referências escaparam, fazendo prever a existência deste entre as
mulheres da família. Mesmo que se falasse pouco no espaço de conversação familiar e social, o
aborto não era algo desconhecido das mulheres; as mulheres o conheciam, existindo, inclusive, a
produção de uma linguagem e conhecimento próprios, como os chás, das mulheres mais velhas.
Concluindo
O caminho adotado nesta reflexão teve o objetivo de revelar a forma como alguns grupos de
mulheres significam a experiência de abortar, a partir de códigos culturais próprios. Busquei
apresentar as contradições presentes nos depoimentos, evitando generalizações, discursos
Meu objetivo era situar o abortamento a partir dos muitos sentidos e ressignificações,
trazendo a experiência de abortar relacionada às práticas de resistência e da busca de autonomia.
Desde muito, as mulheres desenvolveram práticas de resistência, baseadas na cumplicidade entre as
mulheres, no enfrentamento às normas e na tentativa de burlar as imposições impostas. No campo
do aborto, os chás, duchas, garrafadas e outras tecnologias do saber popular, oportunizaram a
interrupção da gravidez por mulheres. A própria questão do uso do cytotec como tecnologia
farmacológica para o abortamento foi uma descoberta. O uso do citotec é uma invenção que vem
de uma apropriação contra-hegemônica baseada no abandono que as mulheres vivem diante de uma
gravidez inesperada e da necessidade de resolver uma situação emergente. A apropriação das
práticas das mulheres pelo discurso religioso e legal torna o ato um crime e pecado.
É simbólica a posição das parteiras tradicionais frente ao aborto, onde o aborto se configura
como uma questão de cuidado e não de pecado, sendo as noções de pecado e criminalidade que as
Pensar o aborto com o significado de ruptura no processo de construção identitária, a partir
de parâmetros que, gradativamente, passaram a fazer parte do sistema de relação sexo/gênero, como
a experiência de se constituir fora da dualidade homem-opressor/mulher-oprimida. Especialmente,
para contribuir com a formulação de argumentos que possam colaborar para a construção de novas
legalidades, onde o aborto deixa de ser crime e torna-se um direito passível de ser acionado por
mulheres e homens, a depender das suas decisões.
Referências
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