Microsoft word - o fantasma de purim passado

Há três anos, enquanto visitava Teerão, fui apresentado a um homem sem charme chamado Muhammad Ali Samadi que, disseram-me, me iria falar da peculiar leitura que a teocracia iraniana faz do judaísmo e do sionismo. O senhor Samadi dizia que o líder supremo do Irão, Ayatollah Ali Khamenei, não defendia o antisemitismo. Mas, momentos depois, usaria uma metáfora epidemiológica para explicar o papel dos judeus na História. “O homem tem sempre doenças e infecções”, disse ele. “No mundo o Judeu Internacional é uma infecção .” Um ano depois, o senhor Samadi tornou-se o porta-voz do Esteshadion, ou Aqueles que Buscam o Martírio, um grupo que tem por missão treinar jovens iranianos para matar Salman Rushdie, cometer actos de suicídio terrorista contra americanos no Iraque e fazer explodir judeus por todo o mundo. “Os sionistas devem saber que não estarão a salvo enquanto forem uma afronta a Deus”, disse ele. Perguntei-lhe se esses “sionistas” a que se referia eram israelitas ou, num sentido mais lato, judeus. “Judeus, sionistas, israelitas”, confirmou ele de forma pouco ambígua. Eu não estava no Irão para recolher os despojos antisemitas de terroristas de segundo plano, apesar de ter comprado uma mochila cheia de panfletos e livros obcecados com os judeus, incluindo uma cópia do “Protocolos dos Sábios de Sião” em persa. Estava no Irão principalmente para atravessar a fronteira para o Iraque, cujo ditador estava à beira de ser deposto pelo exército americano. Saddam Hussein prometera uma vez “fazer fogo para queimar metade de Israel” – o que tentou fazer, sem sucesso, durante a guerra do golfo, em 1991. Quis o destino que fosse Purim quando tentei atravessar a fronteira do Irão para o Iraque. Purim é uma ruidosa festividade judaica, celebrada hoje, que comemora o facto dos judeus da Pérsia terem escapado por um triz à aniquilação ordenada por Haman, um vizir sanguinário. A história do Purim é contada no Livro de Ester, que foi lido ontem à noite em sinagogas por todo o mundo – incluindo no Irão, que alberga os restos do que em tempos fora uma grande e antiga comunidade judaica. O judaísmo precede o Islão em mais de mil anos. Purim é o ne plus ultra da velha anedota judaica que resume a história das festividades numa frase: “Tentaram matar-nos, não conseguiram, vamos comer.” O Purim é um dia ruidoso, uma espécie de Carnaval judaico durante o qual até os rabinos devem beber até cair. É possível imaginar, mesmo assim, que os judeus perseguidos do Irão, vivendo hoje sob a alçada de um presidente, Mahmoud Ahmadinejad, que nega a verdade histórica do Holocausto europeu ao mesmo tempo que ameaça com um outro no Médio Oriente, possam ver o Purim não como a história de uma tragédia evitada, mas sim como a de uma tragédia profetizada. A história do Purim é recheada de suspense, ofensiva, e quase de certeza falsa, uma fantasia de vingança e redenção. Especialistas académicos geralmente concordam que se trata de uma pseudo-história introduzida no judaísmo há cerca de 2400 anos, numa altura em que a memória da conquista de Jerusalém pelos babilónios estava ainda bem viva. Na história, o presunçoso rei Ahasuerus escolhe a linda Ester para ser sua rainha. Ester, que esconde o facto de ser judia, tem um tio, o estóico e corajoso Mordecai, que não esconde a sua fé e que é odiado por Haman por se recusar a curvar perante ele. Haman, cheio de ódio, decide vingar-se não só em Mordecai mas em toda a sua tribo. “Há um certo povo espalhado e disperso por entre os povos em todas as províncias do Vosso reino”, diz Haman ao rei Ahasuerus. “Não é do beneficio do rei tolerá-los.” O rei concorda em exterminar os seus súbditos judeus. Para salvar o seu povo, Ester revela ao rei que é judia. Chocado, o rei ordena que Haman seja enforcado, na forca que o próprio Haman erguera para executar Mordecai. Mas o rei não tem poder para reverter o seu édito de genocídio, então, em vez disso, ele permite que os judeus se armem e se defendam contra o extermínio. E assim foi. É uma história estranha em vários aspectos, um dos quais pelo facto dos antigos reis persas tolerarem outros deuses e os povos que os adoravam. Esta tolerância, deve dizer-se, era um dos principais atributos do politeísmo; os judeus não eram vistos como ameaça à ordem teológica na Pérsia pré-islâmica. O Médio Oriente muçulmano de hoje, enfim, é um pano de fundo muito mais plausível para o tipo de plano de aniquilação anti-judaico descrito no Livro de Ester do que era a Pérsia antiga, onde a história tem lugar. O regime iraniano, apesar de tudo, faz paradas militares por Teerão com mísseis Shahab-3 envoltos em estandartes onde se pode ler: Apagaremos Israel do mapa.” O líder de uma das assembleias clericais do país, Hashemi Rafsanjani, disse em Dezembro de 2001 que “a aplicação de uma bomba atómica não deixaria nada de Israel e produziria apenas danos menores no mundo islâmico.” O líder supremo ele próprio, Ayatollah Khamenei, disse de Israel em 2000: “Dissemos repetidamente que este estado é um tumor canceroso e que devia ser removido da região.” Há aqui múltiplas tragédias. A civilização persa, pré-islâmica ou não, nunca foi muito hostil aos judeus. Na verdade, um dos grandes heróis da História Judaica é Ciro, o rei persa que restaurou os judeus em Israel após a destruição do Primeiro Templo. E a República Islâmica do Irão, embora não seja nenhuma utopia semita, também não tem sido a Polónia. Mesmo hoje, as tiradas febris contra os judeus que se ouvem entre a intelligentsia em Beirute ou no Cairo estão quase totalmente ausentes em Teerão, excepto entre a elite clerical, que compreende a utilidade do antisemitismo no seu esforço de aproximação aos muçulmanos árabes. O que não quer dizer que os clérigos não acreditam no que dizem. Isto traz-nos de volta à triste metáfora do senhor Samadi. A terminologia da doença infiltra agora o discurso antisemita por todo o Médio Oriente. Há quatro anos, um líder do Hezbollah no Vale de Bekaa, no Líbano, chamado Hussein Haj Hassan disse-me que os judeus são “como parasitas nas nações que os acolhem.” Os líderes do Hamas e da Jihad Islâmica falam da mesma maneira. Preocupamo-nos em não reagir de forma exagerada, mas este tipo de linguagem ecoa a passagem de Mein Kampf na qual o Haman austríaco compara os judeus a “um bacilo que começa a expandir-se assim que encontra um meio favorável.” Ainda acredito que os judeus, e o Estado judaico, sobreviverão ao seu encontro com o senhor Ahmadinejad e o Ayatollah Khamenei do Irão. Os líderes do Irão ainda não têm a bomba e, apesar das suas inclinações escatológicas, eles podem não ser totalmente imunes ao charme da lógica da teoria da dissuasão. E, claro, tanto a parábola como a História ensinam que os judeus conseguem sempre sobreviver. Mesmo assim, muita gente, no Irão e não só, acredita que o Estado judaico é um cancro, e é estúpido pensar que isto é uma ideia sem consequências. Como me disse um líder da Jihad Islâmica não há muito tempo: “Toda a gente sabe a cura para o cancro é a radiação.” 2006 Jeffrey Goldberg Baseado no escrito original do Jeffrey Goldberg no jornal “New York Times”. Tradução e edição em português: Nuno Guerreiro Josué

Source: http://gremiohebraico.com.sapo.pt/ofantasmadepurimpassado.pdf

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