A MELANCOLIA E O EMBOTAMENTO DA MEMÓRIA EM LEITE DERRAMADO
MELANCHOLY AND OBLIVION IN LEITE DERRAMADO Resumo O objetivo deste texto é relacionar alguns conceitos sobre o apagamento da memória na obra Leite derramado, de Chico Buarque. Seguindo as teorias de Paul Ricoeur, em Memória, história, esquecimento e de Sigmund Freud, em Luto e melancolia, o texto apresenta uma análise da obra apontando de que forma a melancolia afeta a memória do narrador, fazendo com que ele conte sua história de maneira não linear, fragmentada e embotada. Palavras-chave: Melancolia. Memória. Esquecimento. Chico Buarque. Leite derramado. Abstract The objective of this text is to relate some concepts about forgetfulness in Leite derramado, by Chico Buarque. Guided by Paul Ricoeur’s theory in Memory, History, Forgetting and Sigmund Freud’s essay Mourning and Melancholy, the text analyses the story pointing how the melancholy affects narrator’s memory, making him tells his story in a non-linear, fragmented and disturbed way. Key words: Melancholy. Memory. Oblivion. Chico Buarque. Leite derramado. Introdução
A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. (BUARQUE, 2010, p. 41)
Antes de indicar a leitura do romance Leite derramado, costumo alertar as
pessoas que possuem idosos com algum tipo de senilidade na família que devem se
preparar para lerem o que vivem. E recomendo, também, aos leitores que estejam numa
fase depressiva, que tomem um Prozac antes. Não que o livro tenha um tom byroniano,
pessimista, muito menos melodramático. É que a ficção tem esse poder de fazer viver e
reviver sentimentos e dramas que nem sempre se está preparado para viver e reviver.
1 Mestranda em Estudos literários pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. E-mail: [email protected]
Para quem já foi voluntária em uma “instituição asilar” ou “casa de repouso”
(antes do politicamente correto era comum chamar de asilomesmo), não há como evitar
identificação imediata com a leitura. Chega a causar impacto ver, nas páginas desse
livro, tanta realidade. Conheci muitos Eulálios e Eulálias. Fui uma ouvinte anônima ─
como a do livro ─ que, ao lado da cama ou da maca, ouviu relatos tristes, confusos e
doloridos de idosos, também derramados em profusão, fora de cronologia, carregados
Mesmo sabendo que se trata de uma obra de ficção, a leitora empírica em mim
resgata, na experiência do asilo, velhos relatos ouvidos. E se pergunta, da mesma forma
que a jovem que fui se perguntava há anos, diante de relatos tão confusos: “O que faz
algumas coisas serem esquecidas ou embotadas, enquanto outras permanecem tão vivas
Neste trabalho, proponho-me a fazer uma análise do embotamento da memória
na obra Leite derramado, de Chico Buarque (2010), à luz da teoria de Paul Ricœur Um romance de perdas Leite derramado parece ser a narrativa da irreversibilidade das coisas. Conta a
trajetória de uma vida decadente e infeliz, mas com momentos felizes (e, por isso,
memoráveis: dignos de serem rememorados) – que são uma espécie de âncora na qual a
memória do narrador-personagem se agarra.
A leitura desse romance tem um gosto de “romance de perdas”. Chega a causar
certo impacto a forma quase natural com que Eulálio conta sua vida, atravessada por
sucessivas perdas: do pai, da fortuna, das propriedades, do status, da esposa
(principalmente dela), do neto, do bisneto. É interessante observar que a forma como o
personagem conta essas perdas – sem lágrimas nem melodrama – não o transforma em
“coitado”, mas reforça seu papel de vítima. E é justamente essa vitimização que dá um
Porém, não se percebe tudo isso de imediato. A narrativa está longe de ser
linear. O leitor sente-se como que viajando em uma máquina do tempo com defeito. Ora
é arremessado para um passado remoto, ora para um passado mais recente, com nomes e
informações soltas, sem compreender bem a cronologia dos fatos. As lembranças de
Eulálio são espontâneas, brotam e jorram, mas sua narrativa está repleta de lacunas, idas
e vindas. Ele tem lapsos e gradações de memória. À medida que conta sua vida, em um
leito de hospital, vai retomando fatos já comentados e acrescentando detalhes que não
havia contado antes. Por conta dessa narrativa “em espiral”, só é possível reconstruir
sua história depois de ler o romance quase por completo. Ler a narrativa de Eulálio e
tentar sequenciar os fatos é como montar um quebra-cabeça.
O problema é que há peças repetidas, peças que se superpõem, os contornos são os mesmos, ou quase, a tonalidade pode ser diferente. Imagem mais expressiva do modo de realização do romance é imaginar que há mais de um jogo a ser montado. É preciso decidir a peça que cabe no cenário que representa o que de fato foi vivido, o que se encaixa na cena tal como a memória reconstrói o vivido (WEINHARDT, 2012).
Por conta desse “embotamento da memória” que acomete o personagem, Leite derramado é aqui observado sob a ótica da teoria de Paul Ricœur, no livro A memória, a história, o esquecimento − em que o autor apresenta percursos possíveis para se
reconstruir uma trajetória narrativa e as possíveis causas desse impedimento de
O começar, o continuar e o cessar
Segundo Husserl (apud RICŒUR, 2007, p. 52), existe um “ponto-origem” que
faz com que haja um antes e um depois. Esse ponto está bem demarcado na história de
Eulálio: é seu encontro com Matilde. Ele tinha dezesseis anos quando seu pai foi
assassinado. Viu Matilde, pela primeira vez, na missa de sétimo dia do pai. Sua reação à
visão da moça (e à fantasia que teve com ela) foi tão forte que teve uma ereção e não
pode se levantar para ir comungar. Finda a missa, quando estava recebendo as
condolências ao lado da mãe, do lado de fora da igreja, Matilde se aproximou e disse
seu nome, como se o estivesse batizando ou nomeando cavaleiro. Esse momento marca
o início de uma nova fase para Eulálio, como um rito de passagem. Ele deixa de ser o
filho, o menino, para se tornar homem, e assim é “trazido à vida” por Matilde. Não por
coincidência, essa é a primeira vez que o nome do personagem é dito. Até então, ele só
tinha dado a conhecer o sobrenome da família.
Esse encontro com Matilde será rememorado várias vezes ao longo da narrativa,
sem muitas variações. No entanto, a continuação do relacionamento − o casamento, o
nascimento da filha, a vida social − vai sendo gotejada em espirais graduais de
O fim do relacionamento entre Matilde e Eulálio é turvo, contado em “degradês
retencionais” (RICŒUR, 2007, p. 52) que oscilam e vão carregando o leitor nessa
máquina do tempo confusa que é a memória de Eulálio.
À semelhança da dúvida que assalta um leitor de romances policiais, querendo
saber quem foi o autor de um determinado crime, o leitor se pergunta, enquanto vai
lendo: “Afinal, o que aconteceu realmente com Matilde?”. Sabe-se que ela saiu da vida
do narrador: “É esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram. Acabo de
lembrar que Matilde vai sumir para sempre.”(BUARQUE, 2010, p. 117)
Esse “sumiço” de Matilde é apresentado pelo narrador em diferentes versões,
que vão sendo expostas ao longo de sua fala. Em determinado ponto da narrativa,
entende-se que Matilde morreu, deixando tudo o que tinha nos armários. Eulálio fazia
outras mulheres usarem suas roupas e joias, numa tentativa de mantê-la viva.
Conversando com a filha, Maria Eulália, ele utiliza o verbo “deixar” como um
eufemismo para morrer: “[.] descuidei de acompanhá-la [.], logo que sua mãe nos
Na sequência, ocorre a revelação do abandono: “Da babá ao portuguesinho do
armazém, todos sabiam que a sua mãe, desarvorada, tinha partido sem deixar um bilhete
ou fazer a mala” (BUARQUE, 2010, p. 95). Que Matilde havia partido estava
esclarecido. Saíra no meio da noite, deixando tudo para trás. Mas. foi para onde?
Como? Por quê? Daí em diante, há uma sucessão de loopings e de explicações
conflitantes sobre o paradeiro de Matilde.
Ao ocultar a verdade da filha, Eulálio abriu espaço para especulações. A menina
ouvia versões diferentes na rua, na escola, na família, e confrontava o pai – que
continuava ocultando a verdade e criando novas justificativas:
• Ora Matilde fugira com um amante. • Ora se suicidara. • Ora morrera afogada. • Ora morrera em um desastre de automóvel. (Eulálio até providenciou um túmulo
Weinhardt (2012) comenta, a respeito das dúvidas levantadas sobre Matilde ao
Quase tudo a respeito de Matilde fica sob o signo da dúvida, exceto a paixão que o toma. A perda da amada determina sua falta de rumo na vida. Entre as frustradas buscas para encontrá-la e as tentativas de construção de uma origem para apresentar à filha, somadas com a idealização própria do objeto do desejo e os fantasmas entrevistos por um ciumento, tudo se funde e confunde na rememoração.
Ele revela que a esposa havia solicitado a um médico francês, conhecido da
família, que a internasse num sanatório do interior do estado, incógnita, para ser tratada
de tuberculose. Somente assim evitaria problemas para o marido e a filha, já que a
doença estigmatizava pacientes e familiares (BUARQUE, 2010, p. 163). O médico
passou, então, a enviar cartas ao marido de Matilde, falando sobre seu tratamento e sua
Eulálio cita a penúltima carta do doutor e se refere à “trágica desaparição de
Matilde” (por quatro vezes). Entende-se que ela morreu (BUARQUE, 2010, p. 188).
Ele não abre a última carta do médico. Como se antevisse o trágico final da
esposa, prefere não tomar consciência da realidade e ignorar o que realmente houve com
ela. O narrador, dessa forma, quer acreditar que, ao ignorar o conteúdo da carta e deixá-
la intacta, fez a vontade de Matilde e a deixou sair de sua vida “como desaparecem os
gatos, com pudor de morrer à vista do seu dono”. (BUARQUE, 2010, p. 190)
Tornei a examinar o selo cor de abóbora, no valor de duas piastras, devia ser um selo barato, rocei com a unha as pontas do lacre grená, era como coçar a casca de uma ferida. Olhei o envelope contra a luz, absolutamente opaco, e vai parecer covardia eu jamais ter aberto aquela carta. Talvez eu devesse me inteirar do padecimento da minha mulher, desde o princípio, saber que mal o médico viu nela que na intimidade nunca vi [.] (BUARQUE, 2010, p. 189).
A memória impedida
Ricœur (2007, p. 85-86) aponta alguns fatores que podem impedir a memória: o
fator biológico, como por exemplo, a senilidade, os traumas e, citando um ensaio de
Freud, o luto e a melancolia. Nesse ensaio, o pai da psicanálise (1917, apud RICŒUR,
2007, p. 85) esclarece que “o luto é sempre a reação à perda de uma pessoa amada ou de
uma abstração erigida em substituto dessa pessoa, tal como pátria, liberdade, ideal etc.
porém em alguns doentes vemos surgir, no lugar do luto, a melancolia”.
No luto não ocorre a diminuição do sentimento de si, mas na melancolia isso
ocorre. É o que se percebe, por exemplo, quando Eulálio passa quase seis capítulos
falando da família e da esposa, sem falar de si mesmo, e sequer diz seu primeiro nome.
Ele não deixou de se apresentar por esquecimento, mas sim pela diminuição da
consciência de si provocada por uma relação dolorosa com o passado.
O nome está intimamente ligado à identidade. Como é que um herói de
romances históricos constrói sua identidade? Por sua linhagem e por seu nome, por seus
feitos. Eulálio fala de sua linhagem ilustre (o tataravô, o trisavô, o bisavô, o avô, o
pai.), mas não se apresenta como continuidade dela. Ele é apenas uma extensão da
família, do pai. E vai mostrando que não soube manter a linhagem, deixando a fortuna e
o nome da família se degradarem, ou seja, não foi um herói. Minou a nobreza da família
e viu as chances de recuperação dessa linhagem escoarem nas tristes trajetórias do neto
e do bisneto. Eulálio se transforma numa “sombra” do herói.
Outro aspecto interessante é que, no luto, o objeto amado deixa de existir e isso
exige que a libido renuncie ao vínculo que o liga àquele objeto. Para Eulálio, assumir o
luto seria renunciar ao vínculo que o ligava a Matilde, mas “a existência do objeto
amado continua psiquicamente” (RICŒUR, 2007, p. 86) e sua libido permanece ligada
ao objeto perdido, daí os sonhos com Matilde, o desejo por ela, o acordar “melado”, a
obsessão. Ele não aceita viver esse luto que significa a perda de Matilde e o cessar do
A melancolia, então, assoma quando o luto não é vivido, não é resolvido. “[.]
na melancolia é o próprio ego que está desolado: ele cai vítima da própria
desvalorização, da própria acusação, da própria condenação, do próprio rebaixamento”
(RICŒUR, p. 86). Quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica livre e desimpedido.
Nesse aspecto, o trabalho do luto pode ser comparado com o trabalho da lembrança.
O próprio personagem fala de sua dor em um tom melancólico:
Mas bem antes da doença e da velhice, talvez minha vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz. Quando perdi minha mulher, foi atroz, E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida. (BUARQUE, 2010, p. 10).
Eulálio tem uma relação difícil com seu passado. As lembranças causam dor. O
presente, para ele, é triste e o fututo praticamente não existe. As lembranças mais
agradáveis são as da infância, período anterior à entrada de Matilde em sua vida, quando
o pai estava vivo, a família vivendo com abastança e ele sem grandes preocupações.
Quando Eulálio goteja as possíveis causas da saída de Matilde de sua vida,
embotando os fatos, misturando informações, sem ir diretamente ao ponto, está evitando
assumir o cessamento de seu casamento. Ele não quer esquecer Matilde pois
[.] o esquecimento impede a ação de continuar, quer por confusões de papeis impossíveis de emaranhar, quer por conflitos insuperáveis nos quais a disputa é insolúvel, intransponível, quer ainda por danos irreparáveis que costumam remontar a épocas recuadas (RICŒUR, 2007, p. 509).
Esquecer seria apagar Matilde de sua vida. Isso pararia a dor, mas apagaria
também o objeto de sua devoção. Eulálio não esquece Matilde porque sua vida passou a
fazer sentido a partir dela, e perdeu o sentido quando ela se foi. Ele se lembra dela e se
alimenta das lembranças. Seu esquecimento é “de reserva”. Recorda-se dos fatos,
resgatando-os e completando-os pouco a pouco, até montar o quebra-cabeça.
Ele preferiu não ler as últimas cartas do médico, pois sabia que teria de encarar o
fato da morte de Matilde – o cessamento de sua existência. O luto teria de ser vivido e
resolvido efetivamente. O objeto amado deixaria definitivamente de existir. E assim
Eulálio mantém as lembranças embotadas, postergando o cessar, o fim. Dessa forma a
esposa permanece “viva”, mesmo que por meio de lembranças confusas, até o cessar da
vida dele. “Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por
demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da
REFERÊNCIAS
BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras. 2010.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. 1917, vol. XIV, p. 269-291. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/16372739/LUTO-E-MELANCOLIA-FREUD>. Acesso em:
RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François.
WEINHARDT, Marilene. A memória ficcionalizada em Heranças e Leite derramado:
rastros, apagamentos e negociações. Curitiba, setembro de 2012. Não publicado.
______. (org.). Ficção histórica:teoria e crítica. Ponta Grossa, PR: Editora UEPG,
CURRICULUM VITAE Jukka Rantanen, Professor Ph.D. EDUCATION: Docent (Phys. Pharm.) Department of Pharmacy, University of Helsinki Department of Pharmacy, University of Helsinki EMPLOYMENTS: Professor Viikki Drug Discovery Technology Center (DDTC), University of Helsinki, Finland Department of Industrial and Physical Pharmacy, Purdue University (IN), USA Viikki Drug Discovery
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