MEDICINA E SEXUALIDADE: PRIMUN NON NOCERE* Regina Moura**
O que me motivou a aceitar participar desse Seminário e partilhar a mesa com pesquisadores que tanto admiro foi o fato de apesar de médica habituada a tratar de gente - tanto em ambulatório de hospital uni-versitário quanto na clínica privada - e profissional interessada nos estudos da sexualidade humana -, vivo de enfrentar desafios.
Há trinta anos exercendo a profissão que escolhi desde a infância, venho questionando o conceito de que o sujeito é apenas um conjunto de células agrupadas segundo suas funções, para constituírem órgãos que devem funcionar com a precisão de máquinas bem ajustadas, e a isso dar o nome de saúde. Para os adeptos dessa racionalidade, o “ajuste” da máquina-humana deverá ser feito, preferencialmente, com o uso de medicamentos. A medicina torna-se assim uma disciplina cada vez mais reduzida a preceitos bio-farmacológicos, desprezando a riqueza que a visão biopsicossocial do ser humano confere. Duas diferen-tes formas de exercer a arte de curar, por reconhecer a pessoa e o processo de saúde e doença de manei-ras diferentes e antagônicas.
A lógica biomédica imprime uma crescente e quase inevitável relação promíscua com a indústria farmacêu-tica na busca pelo medicamento capaz de curar tudo que não estiver ‘ajustado’. E essa visão organicista, que influencia e/ou é influenciada pelas leis de mercado e presente em todas as especialidades médicas, é também marcante em tudo que se liga à sexualidade humana.
O desenvolvimento científico na área da sexualidade – tanto em relação à ciência do comportamento humano, quanto às bioquímicas e farmacológicas – tornaram possível que a ciência médica interferisse medicamentosamente na vida dos seres humanos.
Os estudos de Alfred Kinsey (1948) sobre o comportamento sexual exerceram enorme influência nos valores sociais e culturais do mundo ocidental, com conceitos fundamentais para o entendimento da diversidade da expressão da sexualidade. Uma das conclusões reveladas pela pesquisa foi que a homoss-exualidade era o comportamento sexual exclusivo para 10% da população masculina. Isso permitiu que os médicos, apoiados por laboratórios farmacêuticos, empreendessem exaustivas e infrutíferas pesquisas na tentativa de reverter a homossexualidade, com a administração de doses maciças de hormônios androgênicos.
A síntese dos esteróides sexuais que resultou na ‘descoberta’ da pílula anticoncepcional – definindo o iní-cio da Revolução Sexual - permitiu que fossem feitas outras indicações para o emprego desses hormônios, acarretando incontáveis iatrogenias que variaram desde o desenvolvimento de raros tumores malignos no colo de útero de adolescentes a uma ‘epidemia’ de acidentes vasculares cerebrais e cardíacos em mul-heres jovens e saudáveis. Os hormônios femininos foram também indiscriminadamente prescritos como terapia de reposição para todas as mulheres a partir dos 40 anos, tendo como conseqüência o aumento da incidência dos cânceres de mama e endométrio das suas adeptas.
Os estudos de Master e Johnson (1966) que desvendaram toda a fisiologia do ato sexual de homens e mulheres serviram de mote para que fosse estabelecido o padrão da resposta física aos estímulos sexuais. Os resultados alcançados pelas exaustivas pesquisas possibilitaram a determinação de um estreito limite de variação da resposta sexual; tudo que não se enquadrasse no modelo proposto seria classificado como ‘transtorno’, não sendo levada em conta a variável ‘subjetividade’ e tudo que se relacionasse à individuali-
dade que, evidentemente, não constituíram critérios na pesquisa biológica. Segundo Illich (1975) o objetivo dos processos em produção de saúde é a melhora na qualidade de vida das pessoas, e para isso a tecno-logia incorporada à medicina apresenta uma rápida expansão no setor econômico. Como veículo promotor de saúde, a medicina tornou-se um empreendimento destinado a realizar atos preventivos, diagnósticos e terapêuticos que visam a doenças específicas de uma população ou de um grupo populacional selecio-nado pela idade ou pelo sexo. Tais medidas, entretanto, reduzem o nível global de saúde, na medida em que, anulando a individualidade, impedem que cada um encontre sentido e solução para o mal que experi-menta. Essa intervenção por categorias acaba por determinar outra forma de iatrogenia: a social. A classi-ficação por faixa etária, por exemplo, faz com que uma determinada população aceite como perfeitamente natural o fato de que pessoas tenham necessidade de medicalização rotineira, simplesmente pelo fato de estarem em uma determinada fase da vida. Assim, gestantes, recém-natos, crianças, adultos, mulheres climatéricas ou idosos têm, a princípio, necessidade de algum tipo de medicamento para a manutenção da saúde.
Para que se tornem legítimos, os medicamentos produzidos necessitam do aval da medicina, embora as lógicas das necessidades em saúde e da indústria e comércio de medicamentos não sejam as mesmas. Desse modo, não é a demanda das populações que norteia as pesquisas por novas drogas, mas a necessidade financeira da indústria farmacêutica. E para criar a necessidade por um novo tipo de trata-mento – de uma doença ou uma não doença – os laboratórios, devidamente assessorados por centros médicos especializados, produzem e distribuem uma vasta bibliografia ricamente ilustrada entre os incontáveis profissionais que têm nessas publicações a única fonte de consulta e atualização. Dessa forma entra no mercado “o novo e revolucionário tratamento para.” que se torna absolutamente necessário, tanto para “o tratamento de.”, quanto para a saúde financeira daquela indústria. Em conseqüência disso, o médico se afasta daquele que é motivo maior da sua profissão – a pessoa do paciente –, assumindo uma relação de dependência com os laboratórios.
Se a medicalização da vida traz a promessa da saúde perfeita, de forma muito mais aguda traz garantia do prazer total. O apagar das luzes do século XX viu realizado o primeiro grande sonho dos laboratórios farmacêuticos, no que diz respeito às drogas pró-sexuais: o sildenafil. Finalmente a impotência masculina ou qualquer alteração da ereção – independente da causa -, poderia ser tratada com um simples remédio. Um exemplo típico de sucesso da transformação de um medicamento em bem de consumo. A ‘descoberta’ desse medicamento trouxe também uma mudança: o termo ‘impotência’ foi substituído por ‘disfunção eré-til’, mesmo sendo considerado que a ausência ou diminuição da qualidade da ereção pode ser resultante de uma dada situação ou contexto relacional. A partir daí, viu-se o milagre da multiplicação das disfunções sexuais. Imediatamente após o lançamento da pílula azul e seus similares, os laboratórios farmacêuticos concentraram os esforços para sanar uma ‘nova’ doença - a disfunção sexual feminina (DSF) – que tende a se espalhar como uma ‘epidemia’, principalmente entre as mulheres após a menopausa. Para legitimar o ‘caráter epidêmico’, diversas pesquisas concluíram que a freqüência de mulheres com transtorno do desejo sexual (ou desejo sexual hipoativo) - uma das expressões da DSF - poderia atingir até 46% da população feminina, embora não se tenha divulgado que a menor variação dessa freqüência em todas as pesquisas foi de 10%. A disparidade dos resultados deve-se, principalmente, ao padrão de respostas que se espera ou se quer receber. Algumas dessas pesquisas relacionam o desejo e atividade sexuais ao uso de hor-mônios de reposição; outras associam a diminuição do desejo sexual ao climatério. Mas a maioria desses estudos não levou em conta a possibilidade ou a qualidade de uma parceria sexual e/ou conjugal, as situa-ções de vida, as relações familiares e profissionais etc.
Atualmente as investigações concentram-se na busca incessante pela droga que promova a cura da mais terrível de todas as DSF: a anorgasmia. Com base nos achados de Master e Johnson que demonstraram ser a lubrificação vaginal a expressão física da excitação sexual e que durante a excitação ocorre uma grande congestão dos vasos dos órgãos pélvicos e vagina, os laboratórios investiram todo empenho na busca por uma droga capaz de causar turgência tão intensa nos vasos da pelve, que resultaria impossível a ausência do clímax sexual. Ao concluírem que congestão vascular e orgasmo são ‘entidades’ diferen-tes, desviaram as investigações para a região ‘acima da cintura’. Agora, profissionais das neurociências ocupam-se em determinar que áreas cerebrais são ativadas durante o orgasmo; mulheres são conectadas a aparelhos de ressonância nuclear magnética funcional, obtendo-se em tempo real e de forma dinâmica, a imagem cerebral durante a auto-estimulação. O medicamento criado a partir de tais investigações bi-ológicas, não só poderia ‘curar esse terrível mal’, como também se tornaria um bom substituto da relação amorosa.
Nosso sistema de saúde está focado em soluções médicas para todos os problemas. Os médicos apren-dem a solucionar as questões de saúde que lhes surgem, com a prescrição de medicamentos. Essa é uma das lógicas que permite entender porque a resolução dos problemas de saúde sexual está alicerçada na prescrição e uso de medicamentos. Uma visão biomédica que valoriza muito mais o estado de ‘paci-ente objeto de cuidado’ em detrimento do ‘paciente sujeito ativo’, responsável por seus atos e vontades e agente transformador do seu próprio destino.
Sem a intenção de demonizar a medicina da qual sou porta-voz, reconhecemos a grande importância e nos valemos das conquistas, restam algumas perguntas: que medicina é essa que determina o que se pode e o que não se pode sentir e experimentar? O que se deve entender por saúde? Que sentido tem a doença e a vida para essa medicina? Onde se situa a morte?
Esse modelo médico, cuja racionalidade está alicerçada nos fenômenos de causa e efeito e que domina todos os “saberes médicos” é a medicina anatomoclínica. Sua lógica baseia-se nos conceitos de que toda doença tem um comportamento próprio (fisiopatologia), um substrato histológico ou anatômico (patologia celular) e uma causa material (etiologia). Ela é marcada pela fragmentação do conhecimento e, por con-seguinte do ser humano, não levando em conta inter-relação entre os aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais em função do processo de especialização. Esse modelo médico baseia a definição de saúde como não apenas ausência de doenças ou sintomas, mas “um estado de bem-estar físico, mental e social”. Partindo dessa lógica, como aponta Boff6, não haveria nenhuma pessoa sadia, pois por esses critérios idealistas e utópicos, como não há sociedade sã, as relações sociais impedem o estado de bem-estar. Ainda segundo Boff, as pesquisas biomédicas não estão em busca apenas da saúde perfeita, mas da imortalidade. E essa imortalidade passa também pela ‘obrigação’ de uma vida sexual ativa ad infinitum. Em que pesem os avanços tecnológicos, científicos e sociais, discutir entre os médicos qualquer outro as-pecto de saúde que não o meramente biológico é tarefa árdua. Mais penoso ainda é debater temas ligados à sexualidade, por estarem impregnados de mitos, preconceitos, desconhecimentos e contradições. Avaliar questões e/ou queixas sexuais com base exclusiva nos conhecimentos biológicos e nos próprios conceitos e valores morais, desvalorizando ou ignorando aqueles que são próprios de quem se apresenta, possibilita outra forma de iatrogenia, na medida em que, como assinala Balint7, a atuação do médico pode ou não ser terapêutica, dependendo da ‘dose’ com que ele se dá ao paciente. Nesse sentido, a medicalização está representada pela ‘opinião’ do médico, isto é, naquilo que ele acredita e determina que ‘é o certo’ ou ‘é o errado’.
A sexualidade relaciona-se à forma de ser, de se expressar e de se relacionar com o mundo, não estando pautada, necessariamente, no desejo e desempenho sexual. Assim, ser ou não sexualmente ativo não dá ou retira do sujeito a qualidade de ‘um ser sexual’ que, como homem ou como mulher, influencia e sofre influências psicológicas, sociais, históricas, políticas, econômicas etc. A redução conceitual de sexualidade como sinônimo de coito, corrobora e legitima a definição de relação sexual como capacidade, possibilidade e necessidade de penetração.
Os estudos em Sexualidade Humana pressupõem conhecimentos que ultrapassam os que a biologia, a fis-iologia, a bioquímica e toda a ciência médica fornecem e têm como proposta a promoção da saúde integral do sujeito, a partir do entendimento das questões relativas à expressão sexual, considerando os aspectos biológicos, psico-afetivos, históricos, socioculturais e as relações de gênero. Da mesma forma que a inves-tigação do funcionamento dos aparelhos digestivo, respiratório, cardiovascular etc fazem parte do contexto geral de avaliação da saúde, a abordagem da sexualidade e do ‘aparelho sexual’ também o são. Descon-hecer a função sexual como constituinte da pessoa, impede que o paciente manifeste e compartilhe suas dúvidas, receios e temores com o médico que se propõe um bom profissional. Pesquisa realizada por estudiosos americanos8 revelou que, mesmo os médicos experientes perguntam sobre hábitos de fumar em 94% dos exames realizados, enquanto as perguntas relacionadas à sexuali-dade são feitas em menos de 49% dessas ocasiões. No Brasil, uma pesquisa envolvendo 4753 ginecolo-gistas constatou que 60% desses especialistas não têm o hábito de investigar e 49% não se sentem segu-ros para abordar as questões sexuais com suas pacientes. Principais razões apontadas: constrangimento e desconhecimento do tema. Além disso, para 83,7% desses especialistas, as dificuldades sexuais podem estar encobertas por outras queixas clínicas.
Tal fato tornou-se mais preocupante quando, em 2002, o conjunto das entidades médicas mais importantes do país - Comissão Nacional de Residência Médica, Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina – estabeleceu e legitimou o controle técnico e a normatização da sexualidade, retirando da Sexo-logia o caráter de especialidade médica, realocando-a como área de atuação10 exclusiva da Ginecologia e da Urologia. Embora determine quais especialistas são autorizados a se ocupar da saúde sexual, essa res-olução contradiz as recomendações das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Medicina11 que pretende formar médicos capazes de “promover a saúde, prevenir e tratar a doença e reabilitar a incapacidade”.
Nas últimas décadas a educação médica vem se ocupando da importância de formar profissionais capazes de atender as necessidades de saúde da sociedade. O grande desafio é dar à formação do médico, uma conotação ética e humanista, procurando diferenciá-la do modelo biomédico tradicional, que reduz o ser humano a um organismo biológico. Alguns obstáculos a serem transpostos: romper com o modelo de ensino centrado no diagnóstico e no tratamento de doenças, modelo que impede que o médico encare seu paciente como sujeito ativo, responsável por seus atos e vontades; desfazer um padrão de ensino que não dá a devida importância ao cuidado e que afasta o profissional da sua dimensão humana. O distan-ciamento que o médico se impõe, tanto para fugir à dor, quanto para exercer tecnicamente sua profissão, favorece o hábito da medicalização, uma vez que ele não está preparado para lidar com o sofrimento.
As mudanças necessárias para alcançar o ideal de médicos “aptos a promover a saúde, prevenir e tratar a doença e reabilitar a incapacidade” apontam para a implantação de práticas educacionais de caráter interdisciplinar, evidenciando as diferentes dimensões que compõem o sujeito e a complexidade dos cui-dados à saúde. Uma das possibilidades para essa transformação é a inclusão do estudo da sexualidade
humana, em caráter multidisciplinar, no currículo dos cursos médicos que, além de interferir na qualidade do profissional em formação, possibilita uma nova geração de médicos mais capazes, mais críticos e mais generosos. A integração com outros saberes, que não o exclusivamente biológico, constitui uma reação à fragmentação que inibe e restringe o questionamento, a discussão e a crítica, servindo como ferramenta metodológica capaz de enfrentar a especificidade e o especialismo, em detrimento da totalidade.
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